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[RESENHA #477] Octavio Amorim Neto - De Dutra a Lula: a condução e os determinantes da política externa brasileira


Octavio Amorim Neto - De Dutra a Lula: a condução e os determinantes da política externa brasileira


Em um polêmico artigo recentemente publicado nos Estados Unidos, os professores John Mearsheimer (Universidade de Chicago) e Stephen Walt (Harvard Kennedy School) foram inflexíveis em seu diagnóstico de que, em sua ânsia de testar hipóteses na literatura usando ferramentas e técnicas metodológicas cada vez mais trabalhos acadêmicos sofisticados sobre questões internacionais relegam o interesse em teoria e conceitos para segundo plano. Conclui-se que se, por um lado, temos sido contemplados em publicações especializadas com grande quantidade de "evidências" e "achados", apoiados na observação empírica e na experiência, por outro, a produção de grandes teses e narrativas com a capacidade de redirecionar a discussão acadêmica. Mais grave ainda é o desenvolvimento qualitativo: segundo os autores, a atomização da produção resulta em uma incapacidade crescente de entender os macroprocessos internacionais atuais, pois perdemos a capacidade de identificar boas variáveis ​​explicativas, formular questões de pesquisa relevantes e, ainda, acompanhar as conexões entre a parte e o todo (Mearsheimer e Walt, 2013). Longe de ser consensual, a posição reflete um foco de tensão no cânone da disciplina acadêmica das relações internacionais que tem o potencial de se espalhar e influenciar seus diversos subcampos.

Enquanto isso, no Brasil, a situação é diferente. A obra De Dutra a Lula: comportamento e determinantes da política externa brasileira, da cientista política Octavia Amorim Neto, foi reconhecida pela comunidade acadêmica como a primeira grande tentativa de aproximar metodologicamente a ciência política das relações internacionais. Amorim Neto se encarregou de apontar quais seriam as variáveis ​​determinantes para a condução da política externa brasileira entre 1945 e 2008, fazendo amplo uso de estatísticas descritivas e inferenciais. Uma das vozes que comentou o livro foi a professora Maria Regina Soares de Lima (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), que descreveu a intenção no prefácio da obra:

Octavio [Amorim Neto] nos apresenta uma análise sistemática do alcance empírico dos argumentos produzidos na literatura qualitativa – que tem sido a modalidade predominante de estudos sobre a política externa brasileira. E o faz combinando viés quantitativo com grande sensibilidade histórica (p. ii).

Críticas e notícias publicadas em periódicos e na grande imprensa também refletem a boa aceitação que este trabalho tem recebido. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, "Octávio conta com dados estatísticos para criar um método de pesquisa quantitativo. Por isso, o volume interessa a cientistas políticos, internacionalistas e historiadores" (Folha de S.Paulo, 2012). A revista Pesquisa da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo comemorou:

Se houve uma brilhante exceção na crescente quantificação do conhecimento, então foi a política externa, sempre analisada qualitativamente e na maioria das vezes em sentido subjetivo. O estudo de Octavia Amorim Neto introduz essa nova variável objetiva, invertendo certezas e confirmando hipóteses (Carlos Haag, 2012, p. 91).

O culminar de todo o processo foi a entrega do Prémio Victor Nunes da Leal, atribuído pela Associação Brasileira de Ciência Política a um júri de especialistas para o melhor livro científico na área de ciência política e relações internacionais do biénio 2010-2012 .

Reconhecidos os méritos de De Dutra e Lula - bem como as qualidades de seu autor como pesquisador e escritor - talvez seja o momento de avaliar mais criticamente seu conteúdo e prováveis ​​implicações para o campo de estudos. Política Externa Brasileira (PEB). Não há intenção aqui de repetir resenhas anteriores do livro (principalmente honestamente positivas). Ao contrário, esta revisão pretende discutir alguns pontos que, até onde pudemos rastrear, ainda não foram devidamente explorados pela academia.

Recapitulando: De Dutra a Lula é basicamente uma tentativa de capturar as principais forças que moldaram a política externa nos três principais ciclos da política brasileira – o Interregno Democrático (1946-1964), o Regime Militar (1964-1985) e a Nova República (1985-2008 ) - pelo método quantitativo.

No esquema explicativo de inspiração neorrealista, a convergência política entre Brasil e Estados Unidos significaria a capacidade deste país (considerado hegemônico na ordem global) influenciar as ações do primeiro. No entanto, a grande tese deixada por Amorim Neto ao final do esforço argumentativo é que, a partir de dados relativos ao período de 1946 a 2008, ficaria evidente o distanciamento do Brasil das posições assumidas pelos Estados Unidos na política internacional. Num continuum que vai de 1946 a 2008 (veja gráfico na página 69), observa-se uma tendência de convergência cada vez menor entre os votos do Brasil e dos Estados Unidos em diversos assuntos da Assembleia Geral. das Nações Unidas. Disso decorre a conclusão, já colocada ao final do texto, de que:

Desde a segunda metade do século XX, quando a economia brasileira cresceu e se industrializou, a população se expandiu, a sociedade se urbanizou e os gastos militares e o tamanho das forças armadas cresceram, o país foi aos poucos se sentindo em condições de se distanciar de seu grande aliado (p. 171).

A passagem acima serve, intencionalmente ou não, de combustível para todos os que acreditam na existência do "antiamericanismo" na condução da política externa na última década. Essa impressão é reforçada pelo seguinte trecho:

O aumento da participação ministerial da esquerda - ou seja, justamente no centro de gravidade do sistema político brasileiro, o poder executivo - cria excelentes condições políticas para que partidos bem organizados e com fortes preferências de atuação internacional no Brasil mudem a política externa, no sentido de seu distanciamento dos Estados Unidos (p. 175).

No entanto, Amorim Neto admite sua confusão ao perceber que mesmo quando a esquerda estava completamente ausente do poder no país (1964-1985), a distância entre o Brasil e os Estados Unidos continuou a aumentar. O autor levanta então uma hipótese auxiliar ad hoc: a proximidade fática das agendas diplomáticas da esquerda e da direita durante a ditadura militar pode ter sido o que levou à suspensão temporária da lógica delineada no parágrafo anterior.


Outra importante lição de De Dutra para Lulu diz respeito ao papel insignificante (estatisticamente insignificante) do Legislativo na definição da política externa a ser seguida pelo Estado brasileiro. No entanto, o autor vai além das evidências encontradas e apresenta uma nova hipótese, que aparentemente não encontra respaldo nos números apresentados: “Uma razão para os supostos excessos de diplomacia praticados entre 2003 e 2010 pode ser encontrada na ausência de um freio doméstico sobre o poder executivo. A ausência de controle do poder executivo aponta imediatamente para o papel do Congresso na política externa” (p. 176). A proposição é condicional — ex hypothesi — porque, afinal, como adverte Amorim Neto, o objetivo do livro não é "posicionar-se sobre se a política externa de Lula foi excessivamente ideológica" (p. 176).

Receio discordar da linha de interpretação explorada no livro na tela. Primeiro, construindo a falácia da distração em sua tese principal. A dificuldade decorre do recorte temporal da obra (1945-2008), que provoca uma distorção logo no início da análise. Explicado: Eurico Gaspar Dutra foi provavelmente o presidente que mais decisivamente alinhou o Brasil com as posições dos EUA ao longo da história da política externa republicana. Mais equilibrado que Castelo Branco ou Collor de Mello. Seu mandato corresponde ao que o historiador Gerson Moura (1990) considerou "alinhamento sem recompensa" porque, embora o Brasil tenha apoiado os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial (desde 1943) e permanecido incondicionalmente associado ao país (nos primeiros anos de Dutra), ele obteve pouco concreto em troca: não conseguiu um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU ou um Plano Marshall para a América Latina. É tão natural que todos os sucessores de Dutra tenham se afastado de seu americanismo extremo e objetivamente malsucedido. Corresponde, por assim dizer, à normalização da curva de política externa.

Além disso, o recorte temporal De Dutra a Lula não leva em conta os antecedentes históricos do fenômeno do americanismo (e também do antiamericanismo) no PEB. Ele não leva em conta, por exemplo, que no momento imediatamente anterior à adesão do Brasil ao bloco dos Aliados, na Segunda Guerra Mundial, com Vargas na presidência, ele acatou ofertas explícitas de aproximação com a Alemanha nazista - e, com isso, distanciar-se das posições dos diplomatas americanos. Se voltarmos à geração que fundou a linha americanista do PEB, ainda notamos que mesmo o Barão do Rio Branco, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa não conseguiram se distinguir dos americanos em repetidas e cruciais ocasiões (como na Segunda Conferência de Haia, 1907). Resumindo: na história da República, o governo Dutra está à margem da política externa – e por isso a narrativa criada por Amorim Neto é tendenciosa.

Ao revelar as razões do aumento das diferenças entre Brasil e Estados Unidos desde a segunda metade do século XX, sugere-se que o crescimento econômico e demográfico do Brasil, aliado à urbanização e ao investimento militar, fizeram com que o país "sentisse-se em condições de distanciando-se passo a passo de seu grande aliado na primeira metade do século passado [XX]” (p. 171). Alternativamente, ofereço a seguinte narrativa: o recuo do Brasil das posições estadunidenses não foi conduzido por um simples acúmulo de atributos de poder ("capacidade", no jargão da escola realista de relações internacionais), mas pela gradual autonomização do país em relação ao resto do mundo - entendido na tradição PEB como a capacidade de criar sua própria norma de comportamento na política internacional - que trouxe, como epifenômeno, a redução do grau de convergência dos votos Brasil/EUA na Assembleia Geral da ONU. É significativo que, durante o Império do Brasil, o americanismo não fosse discutido na política externa. A tradição associativa (ou "reboquista", na estranha tradução de Amorim Neto) foi o europeísmo do século XIX. No entanto, os associativistas sempre foram desafiados pelos autonomistas – independentemente dos rótulos que historiadores e cientistas políticos dariam às duas correntes ao longo dos anos: agrários vs. industriais, entregadores vs. nacionalistas, liberais vs. desenvolvimental, interdependente vs. Soberano, Americanistas Vs. globalistas etc

A ligação diplomática com os EUA deve ser entendida não como essência ou ideologia eterna do PEB, mas como opção pragmática dos que formulam a integração internacional do país, sujeita a constante reavaliação segundo o cálculo estratégico dos estadistas da história histórica dada. momento. Essa marcha pela autonomização do Brasil ajuda a entender, por exemplo, por que os governos de dois presidentes comprometidos com os ideais de esquerda na política externa - Jânio Quadros e João Goulart, arquitetos da "Política Externa Independente" - conseguiram apresentar índices de convergência de votos com os Estados Unidos consistentemente superior aos das duas reconhecidas americanistas da Nova República - Fernanda Collora de Mella e Fernanda Henrique Cardosa. Assim, o processo de ascensão e autoafirmação do Brasil no cenário internacional, transformado em liderança da política externa, parece ter pouca relação direta com o (anti-)americanismo.

Ao superestimar o peso da variável independente "composição ministerial" na formulação da política externa brasileira, além de sugerir um nexo causal entre o papel morno do legislativo na PEB e a implementação de uma política externa (supostamente) "ideológica", Amorim Neto parece omitir dois outros aspectos importantes do processo: a) o histórico isolamento burocrático do Itamaraty, autarquia que por várias décadas exerceu um virtual monopólio sobre as fases de formulação e implementação das relações exteriores brasileiras. política, por delegação, tácita ou explícita, do chefe do poder executivo (Cheibub, 1985)1; eb) a tendência mundial – e não apenas brasileira – de concentração das competências sobre os atos internacionais de um Estado soberano nas mãos do chefe do poder executivo, seja no presidencialismo, seja no parlamentarismo (Milner, 1997), ao contrário ao papel secundário do poder legislativo na formação da política externa, nomeadamente mesmo nos Estados Unidos da América (Jacobs e Page, 2005). A insistência do autor em "ideologia exagerada" e "fortes preferências partidárias" na condução atual da política externa, sem oferecer ao leitor o suporte factual adequado, pode ser uma ilusão.

Além disso, é preciso apontar a fragilidade do organograma elaborado pelo autor para a elaboração da política externa brasileira entre 1946 e 2008 (ver Figura 3.1 na página 81). Amorim Neto se confunde ao dar às Forças Armadas um papel central no processo decisório do PEB, uma suposta emulação do sistema estadunidense de formulação de política externa. Em um país constitucional e historicamente associado ao pacifismo como o Brasil, onde a gestão política das questões de defesa nacional e internacional está a cargo do Ministério da Defesa, comandado por servidores públicos desde sua criação em 1999, há uma clara superestimação da componente militar. . Além disso, a busca por uma síntese do processo decisório brasileiro em política externa em tão longo período de tempo, que inclui tantas e tão profundas mudanças nas estruturas institucionais do Estado, parece artificial. O autor também demonstra desconhecimento da “horizontalização da PEB”, ou seja, o compartilhamento cada vez maior das competências internacionais do Estado brasileiro entre os ministérios Esplanada. Como mostram estudos recentes, mais de 90% dos ministérios (ou órgãos com status ministerial) no Brasil já possuem departamentos, conselhos ou coordenações de assuntos internacionais. Alguns ministérios, como o da cultura ou do esporte, mobilizam intensamente suas estruturas para a atuação internacional, apesar de Itamarata (Badin e França, 2010; Faria, 2012). Limitar a atual produção de PEBs aos Ministérios das Relações Exteriores e da Fazenda é no mínimo anacrônico.

As dificuldades de Dutra a Lulu não se limitam ao estudo da política externa brasileira. Os problemas são evidentes no método escolhido (acompanhamento dos votos do Brasil e dos Estados Unidos na Assembleia Geral da ONU) e na principal variável proxy do trabalho. Começarei observando a estrutura organizacional da Organização das Nações Unidas (ONU). É composto por cinco órgãos principais – a Assembleia Geral, o Conselho de Segurança, o Conselho Econômico e Social, o Conselho de Tutela e o Secretariado – e a Corte Internacional de Justiça. Como consequência da diferenciação funcional da burocracia, cada órgão desempenha um papel específico e tem uma composição diferente. O único desses órgãos com orientação universalista (geográfica e tematicamente) é a Assembleia Geral (AG), que acolhe todos os 193 países membros da ONU em suas sessões plenárias em estrita igualdade de condições. No entanto, a assembléia não é capaz de coagir seus membros. A prerrogativa de criar normas vinculantes é exclusiva do Conselho de Segurança (CS), órgão restrito com participação limitada a 15 Estados membros da ONU – dos quais 5 são cativos2 e os outros 10 temporários.

E que consequência isso tem para a dinâmica da ONU? Embora a Assembléia Geral tenha considerável legitimidade política, suas decisões têm apenas valor simbólico. (Nas hipóteses mais otimistas, os juristas dirão que se trata de soft law, ou seja, conteúdo normativo capaz de influenciar os Estados, mas não de produzir efeitos jurídicos por si só.) As decisões mais dramáticas no que diz respeito à ordem internacional são sempre . adotada no Conselho de Segurança da ONU. Assim, embora consultar o banco de dados de votos registrados desde 1945 por todos os países da ONU sobre os mais diversos temas seja uma ação possível apenas no nível da Assembleia Geral, é legítimo perguntar: qual é o real significado do que os países atribuem à esses votos? Com que seriedade e motivação são conduzidos esses debates? O que realmente está em jogo para os deputados estaduais? Qual a mobilização de recursos por parte de cada estado para tais discussões?

Em certo sentido, pode-se argumentar que este é precisamente o espírito daqueles que conceberam a Carta da ONU: equilibrar o idealismo da representação política universal (a Assembleia) com o realismo militarizado dos poderes (o Conselho). Uma linha plausível de ação diplomática – e que o Brasil já praticou antes – é afirmar certos cargos na Assembleia Geral, mas não no Conselho de Segurança. O "pragmatismo responsável" - forma como a política externa ficou conhecida sob Médici e Geisel - conseguiu se equilibrar entre as concessões ao terceiro mundo na AG e o não confronto com as potências da CS (entre 1968 e 1988, o Brasil esteve ausente do se do fórum de segurança). Os Estados Unidos também expressaram posições e níveis variados de envolvimento com a ONU em sua história diplomática recente. Depois de desfrutar da hegemonia dentro da instituição de 1945 a 1960, eles se viram ameaçados pela independência política dos "satélites" soviéticos - ex-colônias européias localizadas na África, Ásia e Oriente Médio. Michael Dunne observou que desde então "os americanos perderam suas ilusões sobre a ONU, onde o bloco 'afro-asiático' parecia representar um terceiro mundo que era politicamente pouco confiável e economicamente muito exigente, e os latino-americanos não eram mais dependentes [dos EUA ]” (Dunne apud Lopes, 2012, p. 198). O Japão e a Europa Ocidental, elementos-chave da esfera de influência americana, começaram a divergir dos Estados Unidos em questões específicas dentro das Nações Unidas. Em 1971, a República Popular da China aderiu à organização, assumindo o lugar de representação de Formosa (Taiwan) no Conselho de Segurança. A ONU estava se tornando cada vez mais, como descreveu o embaixador Daniel Patrick Moynihan, "um lugar perigoso para os americanos". Assim, durante décadas os Estados Unidos viraram as costas a uma instituição que já não podiam controlar, até tentarem um regresso triunfante com o fim da Guerra Fria (cf. Lopes, 2012).


Outra questão que distorce a análise de Amorim Neto é a tendência relatada de que temas comuns originalmente discutidos na Assembleia migrassem para o Conselho de Segurança nos últimos tempos. Atualmente, repetem-se as discussões da CS sobre os temas "segurança humana", "segurança alimentar", "segurança ambiental", "segurança energética", etc. - a configuração do que se chama de "securitização da agenda internacional". Aparentemente também reflete a percepção dos atores de que o órgão da ONU que realmente importa é o Conselho de Segurança; o resto é "talk shop". Daí a mencionada mudança do eixo político da organização. Por fim, cabe lembrar que ao longo da história das Nações Unidas coexistiram dois registros – o formal e o informal. Isso se aplica a praticamente toda organização política que não represente o excepcionalismo da ONU, não fosse o fato de que nos últimos 25 anos a técnica de construção de maioria (majoritarismo) foi gradativamente substituída pela construção de consenso entre os Estados membros. Essa tendência é particularmente pronunciada no Conselho de Segurança, resultando em um baixo uso do veto expedito a partir da década de 1990, uma forma informal de dirimir divergências e dissipar as contradições mais gritantes. Além disso, estruturas paralelas aos fóruns da ONU, como coalizões intergovernamentais, interferem na votação estatal porque levam ao estabelecimento de posições em bloco e padrões de votação, igualando (ou aumentando) as diferenças entre os países (Kahler, 1992; Prantl, 2005 ). Infelizmente, essa complexidade do voto não é discutida em De Dutra e Lula.

Por fim, Amorim Neto conclui seu texto com um eloquente parágrafo de disclaimer em que afirma que o modelo de análise desenvolvido no livro é historicamente ultrapassado. No entendimento do autor, seus pressupostos são desafiados pela "universalização das relações internacionais do Brasil", sua "ascensão ao status de global player", "a emergência da China como principal parceiro comercial do país", "declínio imperial dos Estados Unidos desde 2003 " bem como "a proliferação de atores envolvidos no processo decisório doméstico [PEB]” (p. 177). É justo. E talvez fosse oportuno indagar, diante de todas as ressalvas levantadas, se De Dutra a Lula ainda seria uma leitura de referência para iniciantes e iniciados em política externa. Naturalmente, é muito cedo para responder à pergunta de forma conclusiva ou para estimar o impacto do livro na comunidade de pensamento de relações internacionais no Brasil. O tempo dirá a importância desse esforço inaugural.

As correções que fazemos nesta revisão não devem de forma alguma diminuir a extensão da proeza analítica de seu autor. Tampouco devem ser lidas como um manifesto anti-empírico, muito menos levar o leitor à conclusão de que a chegada de ativistas quantitativos no campo dos estudos de política externa brasileira é um evento indesejável e perigoso. Definitivamente não é sobre isso. A evolução do estado atual exige novas e novas abordagens ao objeto, preferencialmente com enfoque empírico – sejam estudos de caso ou estudos comparativos. No entanto, em contrapartida ao esforço académico de Amorim Neto, subsiste uma clara necessidade de aperfeiçoamentos conceptuais e teóricos. Somente um melhor equilíbrio entre velhas e novas abordagens de EBP pode levar a um porto seguro.

O Brasil de Lula, segundo Perry Anderson

Anderson, Perry, ISBN 9781788737944, Pág. 256, 2019. Verso Editora

O artigo do historiador inglês Perry Anderson aproxima-se de uma hagiografia do ex-presidente Lula. Não obstante os êxitos, mas também os escândalos, que permearam os dois mandatos de Lula, sua figura se destaca imensamente no texto e sofre apenas de passagem um ou outro arranhão.

Mesmo quando censura, com veemência, atos de corrupção, ou o que chama de "lado sombrio do pt", Anderson poupa a figura presidencial. Em poucas palavras, tal como ocorre desde o tempo das monarquias absolutas, o "rei" acerta sempre e os erros, as transgressões são culpa dos falíveis ministros, os membros do primeiro ou do segundo escalão, na linguagem de hoje.

Nessa esteira, Perry Anderson assume um mantra caro ao ex-presidente: "Nunca antes na História deste país..." etc. O recurso político matreiro, mas inegavelmente eficaz, utilizado nos palanques torna-se falso quando incorporado como pressuposto de um artigo acadêmico. A utilização dessa chave retórica me obriga a voltar a questões e argumentos pisados e repisados. Ressalvo, de início, que não pretendo fazer um balanço do governo Lula. Meu propósito é bem menos ambicioso. Procuro tão somente analisar a versão de Perry Anderson do Brasil de Lula.

Vou começar com o terreno econômico. Aludindo ao perigoso momento do prestígio de Lula durante a crise dos rações mensais iniciada em maio de 2005, Anderson destaca que o ex-presidente superou uma situação difícil graças aos erros da oposição e à existência de duas reservas de emergência "que não só salvaram sua posição , mas o transformou". A primeira "cautela" seria a volta do crescimento econômico após o primeiro mandato "essencialmente por sorte no exterior". Anderson cita um grande aumento nos preços das commodities, juntamente com um aumento na demanda chinesa por minério de ferro e soja, como um dos principais fatores por trás da bonança; a segunda "reserva" seria a implementação de uma série de medidas e programas, como um aumento substancial do salário mínimo acima da inflação, a implementação e expansão do programa Bolsa Família e a introdução de empréstimos salariais. Anderson destaca a implantação do Bolsa Família, destacando que o custo efetivo do programa "é uma ninharia", mas seu enorme impacto político, pois fomentou a criação de um forte vínculo material e simbólico entre Lula e as camadas mais pobres da população brasileira . . Ele diz, com razão, que a elevação do salário mínimo resultou em um mecanismo de transferência de renda mais importante do que os programas assistenciais que atingem também os setores informais da economia, ainda que, segundo Anderson, não cheguem a 80% da força de trabalho. 50%, no pior cenário.

As afirmações do autor no campo econômico poderiam ser consideradas totalmente verdadeiras, não fosse o ocultamento ou a crítica de tudo o que aconteceu nos anos anteriores à chegada de Lula ao poder, especialmente no governo de Fernando Henrique Cardoso. Em poucas palavras, muitos anos depois, Perry Anderson volta ao clichê do "legado maldito", destacando o baixo crescimento dos anos fhc, o aumento da dívida pública, dos juros e da inflação, esta última nos últimos meses de governo . Ignora que para consolidar a estabilidade, Fernando Henrique teria que reorganizar as finanças públicas, privatizar os bancos estatais, renegociar as dívidas nacionais e construir com esses programas de ajuste fiscal. Também não leva em consideração a existência de um cenário externo adverso, por dois motivos principais. De um lado, termos de troca desfavoráveis ​​para o país devido ao baixo preço das commodities; de outro, as crises do México (1994), da Ásia (1997) e da Rússia (1998). Também digno de nota é o temor gerado nos meses finais da presidência pela iminente vitória do PT, temor que se revelou injustificado.

Além disso, o autor do texto prefere ignorar que os inegáveis ​​sucessos do governo Lula no campo da economia e das finanças públicas não se devem apenas à "sorte lá fora", mas também à preservação dos alicerces dela, construídos anteriormente, a partir quadro de grande desorganização. A política econômica responsável teve como ponto de partida o Plano Real, que, após fracassos anteriores, representou um extraordinário sucesso na política macroeconômica ao reduzir a inflação estratosférica a níveis perfeitamente aceitáveis. Como se sabe, os principais beneficiados com a queda da inflação foram as camadas mais pobres da população, indefesas diante da alta de preços que corroía os salários, semanas antes do final de cada mês. Vale citar, por exemplo, a reabilitação das finanças públicas com a limitação das despesas dos entes da federação e a proibição de empréstimos bancários aos respectivos governos estaduais, que puseram fim à onda de campanhas eleitorais financiadas. , a fundo perdido, por bancos públicos. Por fim, relembro o Programa de Estímulo à Reestruturação e Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), que saneou o sistema bancário e criou um patamar de equilíbrio financeiro. Na época, o plano foi obstruído pelo PT, CUT e sindicatos controlados pelo PT como um conluio para salvar os banqueiros. Na realidade, os tempos eram outros, longe da ascensão de Lula ao poder, quando a demonização do setor financeiro sumiu de cena e deu lugar à sua aproximação.

A avaliação de Perry Anderson sobre a continuidade ou descontinuidade da política econômica durante os mandatos de ambos os presidentes é contraditória. Em certo ponto de seu artigo, ele afirma que "longe de qualquer continuidade, houve um descompasso entre seu governo [de Lula] e o de Fernando Henrique Cardoso". A lacuna teria a ver com o fato de Lula ter lançado um contra-ataque agressivo contra as privatizações, e nenhuma empresa ter sido privatizada sob seu governo. Além disso, Anderson faz a pergunta: "Que avaliação da experiência brasileira iniciada durante o governo Lula, e mesmo depois dele, é possível neste momento? Vista como um período da economia política do Brasil, pode ser vista como uma continuação do desenvolvimento do Fernando Henrique Cardoso, o desenvolvimento dentro da mesma matriz.'

É estranho que o autor tome a interrupção das privatizações como sinal de uma virada. Haveria uma cisão se Lula renacionalizasse as empresas privatizadas em resposta à pressão do setor radical de seu partido e aos votos localizados na extrema esquerda. Como teve a sabedoria de preservar, para o bem ou para o mal, o que havia sido feito, não cabe falar em ruptura a esse respeito, a não ser no âmbito dos insultos retóricos, que Anderson chama de "um contra-ataque agressivo contra o anterior". privatização do governo”. Porém, não podemos esquecer que o governo Lula ignorou as agências reguladoras e reduziu a capacidade de regulação pública em setores fundamentais para o bem-estar da população e o desenvolvimento do país.


Em relação à alegada viragem decorrente da renovação radical da política social, é necessário fazer uma distinção. É inegável que o maior crescimento econômico dos anos do governo Lula, bem como a política de transferência de renda, levaram a uma significativa ascensão social das camadas mais pobres da população e dos setores mais baixos da classe média. Mas dizer que o Brasil hoje é majoritariamente um país de classe média ignora o fato, justamente apontado pelo autor do texto, de que o nível de entrada estatística na classe média adotado pelo Ipea é notoriamente baixo em comparação.

Ressaltando o progresso social dos dois mandatos de Lula, Perry Anderson embarca na afirmação, tantas vezes repetida, de que o governo Fernando Henrique "ignorou o setor social", uma inverdade muito bem organizada para apreciar o caráter compassivo de Olihňa. Há um ponto básico a ter em mente a esse respeito. O sempre lembrado programa Bolsa Família, conforme expressamente disposto na Lei Federal nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, resultou da unificação de vários programas implantados no governo Fernando Henrique: Programa Nacional de Renda Mínima Vinculada à Educação; Programa Nacional de Acesso Alimentar; Programa Nacional de Renda Mínima Vinculada à Saúde; Programa Gás-Auxílio, acompanhado de cadastro uniforme do governo federal. Ao final do mandato de Fernando Henrique, o conjunto de programas já beneficiava 5 milhões de famílias e chegava a 12 milhões ao final do mandato de Lula, em 2009. Ressalte-se que a renovação desses programas e sua unificação em Lula ocorreu após o fracasso de outro Modelo Fome Zero, inspirado nos círculos católicos de esquerda. Nesse caso, não se trata de uma simples mudança de rótulo, pois o Fome Zero nasceu com a ideia de incentivar a agricultura familiar por meio da distribuição de alimentos a moradores carentes.

Então, pode-se dizer que, na expressão de Perry Anderson, houve uma ligação entre os mandatos de Fernando Henrique e Lula? Na esfera econômica e social, a afirmação é parcialmente verdadeira se nos atermos ao primeiro mandato de Lula, quando ele geralmente seguia a política econômica de seu antecessor. Desde o segundo mandato, houve uma mudança para uma postura mais estatista, possibilitada pelas conquistas dos primeiros quatro anos de governo. Essa mudança deu maior ênfase ao papel do Estado no processo de investimento e na expansão do mercado interno de massa, mas não representou um novo modelo de desenvolvimento, apesar da retórica em torno do tema.

Uma profunda mudança de rumo entre o governo de Lula e o de Fernando Henrique apareceu no campo da política com mudanças no nível de poder, acompanhadas pelo surgimento de novos atores sociais. Sob os auspícios do Estado e com a utilização de recursos públicos, criou-se um bloco ainda suscetível ao desequilíbrio do jogo político e à ameaça de rotação do poder. O bloco é baseado no lulismo, ou seja, no peso da personalidade carismática de Lula, e tem autômatos do PT, sedes sindicais (com corte na cabeça), grandes grupos privados, beneficiários de empréstimos subsidiados de títulos e fundos de pensão transformados em um elo entre o sindicato e o mundo dos negócios. Acho que foi Francisco de Oliveira quem primeiro viu nascer esse bloco de notórios riscos para a democracia, um sociólogo que não faz ideia da marca do neoliberalismo. Para expressar em uma palavra essa configuração, ele trouxe à cena um animal sui generis, o ornitorrinco, desconhecido em forma zoológica em nossas costas.

Sobre a corrupção no governo Lula, Anderson é perspicaz o suficiente para não pular no barco furado de que as repetidas acusações de membros do governo não passavam de uma conspiração da mídia. Ao contrário, o autor reconhece "que a corrupção da qual o PT se beneficiou e governou [sic] foi provavelmente mais sistemática do que a de qualquer antecessor". Com base nessa observação geral, ele narra abundantemente os detalhes de delitos de vários tipos, atribuídos a José Dirceu, José Genoin, Dudo Mendonça, Luiz Gushiken, Antonio Palocci, etc. , ele se refere ao assassinato não totalmente explicado do prefeito de Santo André Celso Daniela, ocorrido no início de 2002, atribuído a irregularidades na política municipal. A tese de um assassinato político, aliás, foi descartada por Lula e seu partido, que rapidamente puseram fim ao episódio com a contribuição ímpar da polícia de São Paulo.

Dessa forma, Perry Anderson condena descaradamente os chamados delitos ocorridos nos anos Lula, e não haveria razão para insistir nesse ponto. Mas não é assim. O autor tenta amenizar as práticas corruptas, relativiza-as de várias e imaginativas formas. Ele alude, assim, à possibilidade de colocar a questão da corrupção em perspectiva histórica ao dizer que o financiamento ilegal de campanhas políticas por doadores secretos foi ou é um comportamento generalizado na política brasileira. Ele também aponta que o alvo dessa acusação era o presidente do PSDB e ele teve que renunciar à presidência do partido.

Ressalte-se aqui que seria uma farsa atribuir práticas corruptas de toda ordem apenas ao governo Lula e ao PT, que atingiram até mesmo localmente os maiores partidos da oposição, exceto ministros indicados por partidos da base aliada. Essa observação é verdadeira, mas a questão central não é sobre as transgressões habituais, mas sobre a instauração de um sistema de poder no qual tais transgressões estão inseridas como seu elemento constitutivo. Aliás, o autor do texto também está ciente desse fato quando, como já mencionei, faz alusão à "corrupção provavelmente mais sistemática" no governo Lula.

O ponto central do artigo de Anderson sobre corrupção é a negação do então presidente Lula de cumplicidade, mesmo por complacência, nos escândalos que assolaram seu governo. Essa afirmação é feita en passant no meio da frase, como se estivéssemos diante de uma verdade incontestável: “Deixando de lado os erros de conduta do PT, dos quais [Lula] naturalmente desconhecia, o presidente lançou um contra-ataque agressivo [... ]", itálico meu. A fala enfadonha me faz molhar e lembrar o que já foi dito e repetido sobre o papel de Lula diante das "transgressões" de seu governo. Digamos, aliás, que as "transgressões" levaram a presidente Dilma a sanear seus ministérios no primeiro ano de mandato. Como explicar que Lula não sabia dos fatos que aconteciam ao seu redor, mesmo no Palácio do Planalto, quando José Dirceu era Ministro-Chefe da Casa Civil do Presidente da República? Como explicar, quando muitas irregularidades foram reveladas, a defesa feroz do presidente Lula dos incriminados integrantes da linha de frente até que ele foi forçado a recuar diante das pressões da imprensa e da opinião pública?

Significativo também é o tratamento contrastante de Fernando Henrique - de quem Perry Anderson não parece gostar muito - ao tratar do episódio da emenda constitucional, aprovada pelo Congresso em junho de 1997, permitindo a reeleição dos Presidentes da República, efetivada do atual mandato. Na época, muitos discutiram e colocaram em jogo a possibilidade de a emenda abranger esse mandato, enquanto outros falavam da destruição das tradições republicanas. Também é inegável que a emenda aguçou o apetite de alguns governadores de estado que imaginavam a possibilidade de permanecer no poder por mais tempo. Todas essas críticas são relevantes, mas é preciso lembrar que vieram acompanhadas de denúncias da oposição de que o governo teria "comprado votos" no Congresso. Essa denúncia deu origem a uma feroz campanha "fora fhc" promovida pelo PT, o corte e alguns ex-alunos famosos que tentaram torcer as disposições da constituição federal para cassar o mandato legitimamente conquistado.

A alegação não foi comprovada e muito menos a alegação de que Fernando Henrique teria participado ou sabia da fraude. Acusações de compra de votos por dois deputados acreanos, com dinheiro pago por empreiteira, com a participação ativa dos governadores do Acre e do Amazonas, motivaram investigação da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. A comissão obteve provas suficientes de irregularidades, a ponto de os dois parlamentares serem forçados a renunciar para evitar o impeachment. No entanto, nada foi provado sobre a suposta participação do ministro das Comunicações, Sergio Motta, nesse episódio, e o nome do presidente da República nunca apareceu na investigação. Se não por razões éticas, por quais razões o governo arriscaria a ação penal quando o prestígio do presidente Fernando Henrique estava no auge, como demonstra a aprovação da emenda por ampla maioria na Câmara e no Senado? ? Perry Anderson, porém, defende o argumento da oportunidade e, ainda, destaca o envolvimento pessoal do presidente da República na compra de votos. Sua frase não deixa dúvidas: "Sabia-se que Cardoso havia mexido a mão dos deputados do Amazonas [sic] para garantir a emenda da constituição que lhe permitia concorrer a um segundo mandato".

Afirmei acima que Perry Anderson não embarcou na canoa furada de uma "conspiração da mídia" para lidar com os episódios de corrupção do governo Lula. Mas isso não significa que ele tenha simpatia pela imprensa, principalmente pelos grandes jornais do país. Não ter simpatia é uma coisa; ceder à fantasia é outra. Depois de dizer que o leitor da Folha ou do Estadão, para não falar da revista Veja, vive num mundo fora da realidade, porque esses veículos retratam Lula como um aspirante a caudilho tosco, sem o menor entendimento de princípios econômicos ou respeito às liberdades dos civis , o autor tenta explicar as razões desse avanço supostamente ilusionista da grande imprensa. Em uma frase, ele diz que "tradicionalmente, desde o fim do regime militar [...] eram os donos da imprensa e da televisão que escolhiam os candidatos e determinavam o resultado das eleições". No entendimento do autor, o suposto poder da mídia seria uma força irresistível, capaz de decidir a possibilidade de voto de milhões de brasileiros que sabem que não são capazes de decidir por si mesmos! Seguindo seu raciocínio, a eleição de Lula significaria uma perda de poder para a mídia, levando a um susto da imprensa sobre ele. Perry Anderson cita dois exemplos desse suposto controle midiático das eleições nacionais, afirmando que "se o caso mais famoso foi o apoio dado a Collor pelo império da Rede Globo, a coroação de Cardoso pela imprensa, antes mesmo de lançar sua candidatura, foi não menos impressionante".

O exemplo da edição tendenciosa do último debate da campanha presidencial de 1989 pela Rede Globo é verdadeiro e profundamente lamentável, embora não se possa dizer que esse episódio tenha determinado em si a vitória de Collor. O segundo exemplo novamente carece de fundamentos. Anderson esquece que a chamada coroação de Cardoso pela imprensa, antes mesmo do início de sua candidatura, decorreu do fato de a figura do FHC ter sido noticiada como responsável pelo lançamento do Plano Real, ainda na fase urv. Anderson também argumenta que a relação direta de Lula com as massas quebrou o ciclo da imprensa do Grande Eleitor, minando assim o papel da mídia na formação do cenário político. Nesse trecho do texto, fica-se com a impressão de que Anderson nunca assistiu à televisão brasileira, nem mesmo se arriscou a "trocar" de canal. Se o fizesse, saberia que a alardeada relação direta de Lula com as massas nunca teria as consequências que teria se ela não tivesse desempenhado o papel de televisão à frente da Rede Globo. Foi ela quem colocou as imagens das declarações, comícios e manifestações de Lula em inúmeras cerimônias na tela para milhões de telespectadores com maior eficiência.

Isso significa que as emissoras de TV seriam as responsáveis ​​pela reeleição de Lula? De forma alguma, porque o importante papel desempenhado pela mídia em um país complexo, caracterizado por diferenças regionais e uma massa de mais de 100 milhões de eleitores, não se estende à eleição de candidatos. Afinal, Anderson parece não entender a atitude dos grandes jornais brasileiros, que diz estarem engajados em "uma bizarra e veemente litania contra o lulismo, alheia a qualquer sentido objetivo de interesse de classe". Acontece que nem tudo neste mundo passa pelo “interesse de classe”, embora quase tudo passe pelo interesse; neste caso, os interesses específicos dos grandes jornais em meio a uma competição acirrada entre eles. Apenas um exemplo: denúncias de suposta compra de votos no episódio da reeleição que abalou a credibilidade do governo Fernando Henrique surgiram a partir de uma série de reportagens da Folha de S. Paulo.

Algumas palavras sobre questões institucionais, às quais, aliás, Perry Anderson dá pouca importância. Ao se referir à absolvição do então ministro Antonio Palocci pelo Supremo Tribunal Federal - decisão que a opinião pública não absorveu com razão -, ele dá um golpe inusitado no comportamento dos integrantes desse tribunal. Curiosamente, nessa incursão, Anderson fala de um amigo de Fernando Henrique Cardoso, que apoiou o golpe militar de 1964, “e não podia nem se gabar de ser formado em direito”. Minha tentativa de descobrir quem era essa figura oculta não teve sucesso. Terá o historiador Perry Anderson cometido cem anos de pecado cronológico quando se sabe que foi o marechal Floriano Peixoto quem nomeou um ministro não-licenciado em 1893, quando escolheu para o cargo o doutor Barata Ribeiro? ? Ofensas e deslizes à parte, Anderson sequer menciona a importante questão da chamada politização do judiciário ou da criação e iniciativa de um órgão tão importante como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Adiante, cabe lembrar que diversas decisões do STF são alvo de críticas e nem sempre seus integrantes resistem à tentação dos holofotes, embora os programas veiculados na televisão sejam um bom exemplo de transparência. Mas durante o governo Lula, o STF foi responsável por alguns julgamentos históricos ao garantir aos índios a contínua demarcação da reserva Raposa do Sol em Rondônia, contrariando a campanha promovida pelo governador daquele estado e latifundiários locais, em sua maioria grileiros.; reconhecendo as uniões entre pessoas do mesmo sexo, apesar da pressão das igrejas e setores mais conservadores da sociedade; ao permitir o uso de células-tronco para fins de pesquisa, apesar da pressão das indústrias acima mencionadas; mediante o recebimento da declaração do réu do Ministério Público, tratando-se de mesada.

As dúvidas da oposição sobre a atuação pessoal do presidente Lula no cenário internacional não se confirmaram. Ao contrário, Lula soube valer-se de sua condição de monoglota, o que pode ser explicado por sua origem social, e apesar das afirmações absurdas que permearam seus discursos em visitas a inúmeros países e encontros internacionais, firmou-se como o representante máximo . um país cujo prestígio cresceu à primeira vista. Construir sua imagem foi facilitado por sua história de vida e pelo fato de ele não ser o líder radical que muitos temiam. Além disso, o mundo oficial reconhecia Lulu como uma líder com marca própria, que se diferenciava do formalismo das negociações diplomáticas.

A política externa caracterizou-se pela busca de maiores vínculos com os países da África, Ásia e América Latina, o que culminou na significativa atuação do Brasil na formação do chamado G-20. Ao mesmo tempo, teve aspectos comprometedores, sobretudo por seu viés ideológico, evidenciado pela relação fraterna com governos autoritários, antigos ou novos, como é o caso de Cuba e da Venezuela.

Na avaliação de Perry Anderson, a política externa de Lula merece elogios generalizados. A maior prioridade para a integração regional é apoiar o Mercosul com os países vizinhos ao sul e "rejeitar a atitude esnobe [sic] de Cuba e da Venezuela em relação ao norte", liderando a frente dos países mais pobres para impedir tentativas de intenções euro-americanas introduzir mais acordos de "livre comércio" e o papel do Brasil nos BRICs são enfatizados no texto a ponto de o chanceler Celso Amorim merecer ser apontado como "a figura mais marcante do gabinete de Lula".

Vale notar como Perry Anderson vê a posição do presidente Lula nas relações com o regime teocrático do Irã. Lula - diz ele - "não só reconheceu a Palestina como um Estado [não há o que se opor a esse respeito], como também se recusou a aderir ao bloqueio do Irã, chegando a convidar Ahmadinejad para visitar o Brasil. Para o Brasil, foi praticamente uma declaração de independência diplomática. Washington ficou furioso e a imprensa local ficou fora de si com essa quebra de solidariedade atlântica." Poucos eleitores se importaram, diz o autor, mas a opinião pública sim, digo eu e muitos outros. Como você pode ver, o parâmetro de Anderson para medir o comportamento do Brasil na esfera internacional é baseado em um termômetro que mede, positiva ou negativamente, as maiores ou menores distâncias de nosso país em relação aos países ocidentais, cujo foco principal são os Estados Unidos da América.América.

Ninguém ignora o fato de que no campo das relações internacionais, gostemos ou não, uma posição totalmente alinhada com os princípios e valores básicos geralmente cede lugar aos interesses da realpolitik. Os países ocidentais são um claro exemplo disso. Mas seria necessário que o Brasil seguisse esse caminho, e ainda mais que o presidente Lula tivesse um comportamento de desprezo pelos direitos humanos, como aconteceu em Cuba e no Irã em particular? Por mais que mereça simpatia a luta dos dissidentes cubanos contra a ditadura de Castro por meios pacíficos, é compreensível que os presidentes brasileiros evitem o contato com os opositores durante as visitas oficiais a Cuba. Lula não está sozinho nessa atitude, até agora é seguido pelos presidentes Dilma Rousseff e Fernando Henrique Cardoso. No entanto, Lula não parou com esse gesto e foi ainda mais longe durante sua visita oficial aos Castros em março de 2010, quando zombou do recurso desesperado dos dissidentes às greves de fome, chegando infelizmente perto, para dizer o mínimo. presos políticos com criminosos comuns. O momento não poderia ser pior. Naquela ocasião, o pedreiro Orlando Zapata Tamayo faleceu após mais de oitenta dias de greve de fome.

Sobre as relações de nosso país com o Irã, que motivaram as palavras entusiásticas de Perry Anderson, vale lembrar que o governo Lula ignorou os repetidos abusos dos direitos humanos por parte do governo iraniano. Além disso, assim que as eleições de 2009 no país terminaram, com evidências veementes de fraude, quando milhões de manifestantes saíram às ruas e foram duramente reprimidos pelas "forças da ordem", Lula correu para ratificar o resultado da eleição que deu a vitória a Ahmadinejad. Em uma de suas metáforas características, comparou a reação de parte significativa da população iraniana ao grito de perdedor, como está acontecendo entre Flamengo e Vasco da Gama...

Desde o início de seu mandato, a presidente Dilma corrigiu em parte as atitudes de sua antecessora ao condenar, por exemplo, a violência contra a mulher, da qual o apedrejamento de supostos adúlteros é um exemplo marcante. Em geral, Dilma tem assumido uma postura mais equilibrada nas relações de nosso país com a teocracia iraniana, como evidenciado pelo voto da ONU a favor de uma resolução que abriu caminho para uma investigação sobre abusos de direitos humanos no Irã. Perry Anderson parece não gostar nada do governo Dilma, pelo menos no campo da política externa. Basta comparar a já mencionada referência ao “Ministro Extraordinário Celso Amorim” com a alusão ao Ministro Antonio Patriota, sem citar seu nome, em trecho de seu texto criticando os primeiros passos da liderança do atual presidente: “[...] restaurando o poder de Palocci como chefe do estado-maior e substituindo Amorim como secretário de relações exteriores por um emissário complacente em Washington, seu gabinete foi projetado para garantir negócios e os Estados Unidos não precisam temer o novo governo. ".

Em suma, sobre este e outros pontos, Perry Anderson relata diferenças sensíveis entre os governos de Lula e Dilma, o que certamente é um exagero, pelo menos até hoje. Sua tendência maniqueísta tenta traçar uma linha clara, separando os maus - malévolos neoliberais - dos bons - inimigos do imperialismo. No mínimo, esse conceito tem um sabor arcaico, do qual um exemplo proeminente é o texto analisado.

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