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[RESENHA #941] As sete luas de Maali Almeida, de Shehan Karunatilaka


APRESENTAÇÃO: Colombo, Sri Lanka, 1990. Maali Almeida descobre da pior maneira possível que existe vida após a morte: ele acorda no Interstício, um lugar cheio de almas confusas e perdidas. Nessa espécie de purgatório, ele descobre que foi assassinado e que seu corpo desmembrado está afundando no Lago Beira, mas não faz ideia de quem o matou. Numa época em que o acerto de contas é feito por esquadrões da morte, capangas e homens-bombas, a lista de suspeitos é enorme.

Maali era fotógrafo de guerra, viciado em apostas e, apesar de ter se relacionado com muitos homens, nunca se assumiu gay. Antes de morrer, ele tirou fotos que poderiam abalar o seu país e as guardou em envelopes, cada um representado por uma carta de baralho. Para que a morte dele não seja em vão, ele precisa entrar em contato com as pessoas que ama, guiá-las até o esconderijo das fotografias e dar sua cartada final. Só tem um problema: se ele quiser ir para a Luz, precisa fazer isso antes da sétima lua.

As sete luas de Maali Almeida é um romance cheio de fantasia e realidade. Shehan Karunatilaka, um dos autores mais proeminentes do Sri Lanka, usa seu humor mordaz e transforma os leitores em testemunhas da brutalidade da guerra civil no país. Ao vagarmos com Maali pelo além, somos confrontados com verdades perturbadoras sobre a vida e a morte.

RESENHA

O cenário é Colombo, no final de 1989, quando a guerra civil no Sri Lanka causa caos e morte. Maali Almeida, uma fotógrafa freelancer, acorda na vida após a morte, chamada de In Between, sem memória de como morreu. O In Between é exatamente o que o nome sugere - um lugar conectado ao mundo dos vivos e um centro lotado de burocracia para as almas que se preparam para seguir em direção à Luz. Maali tem sete luas, o mesmo que sete dias, para resolver seus assuntos antes de ficar preso para sempre no In Between, onde sua alma ficará exposta a todos os tipos de ghouls, demônios, fantasmas famintos e monstros como o Mahakali. A vida após a morte é habitada por rebeldes mortos que querem vingança, suicidas que continuam a pular de prédios, turistas mortos que continuam a passear e Ajudantes que tentam orientar os recém-mortos nesta fase de transição. Durante sua jornada, Maali conversa com vários compatriotas que, em sua vida após a morte, refletem sobre diversos temas, como a situação política do Sri Lanka, religião, família, injustiça, guerra e o que realmente importa na vida. É uma escolha deliberada de Karunatilaka permitir que muitas vítimas do Sri Lanka falem, em vez de sucumbir ao "doce esquecimento e ao sono sem sonhos".

A vida após a morte de Maali é tão complexa quanto a sua vida. Ele é obrigado a ver seu corpo sendo cortado e jogado no poluído Lago Beira por "lixeiros" - criminosos contratados para se livrar dos inúmeros corpos que resultam dos atos violentos que marcam a guerra civil. À medida que Maali compartilha aos poucos a história de sua vida com o leitor, descobrimos sobre as fotos que ele guardou cuidadosamente - evidências de atrocidades cometidas contra civis por esquadrões da morte do governo, e dos funcionários corruptos que organizam esses atos horríveis - que podem ser a chave para seu assassinato. Há também os relacionamentos complicados com seu melhor amigo, colega de quarto e namorada falsa, Jaki, e seu amante secreto DD, filho de um poderoso ministro do governo. Enquanto Jaki e DD estão determinados a encontrar seu amigo desaparecido, Maali tenta desesperadamente levá-los às fotos e negativos que irão abalar a sociedade de Colombo.

O romance de Karunatilaka é divertido, mas também sombrio, confrontando o leitor com a realidade de um conflito que durou mais de duas décadas. A narrativa volta constantemente aos eventos sangrentos de 1983 - o começo oficial da longa guerra civil que foi principalmente travada entre o governo cingalês dominante do Sri Lanka e o grupo militante Tigres de Libertação do Tamil Eelam (LTTE) que lutava por uma pátria independente Tamil no norte e leste do país. Como fotojornalista e 'fixador' de entrevistas para a Associated Press, Maali interage com todas as facções do conflito, fornecendo vários suspeitos que poderiam ter sido responsáveis ​​por sua morte. Mas o mais importante é que o papel de Maali como personagem permite a Karunatilaka revelar uma sociedade profundamente e prejudicialmente dividida por diferenças étnicas e políticas. Como Maali escreve a um jornalista americano para explicar as complexidades do conflito: "Não tente procurar os mocinhos porque não há nenhum".

A narração de Maali é feita em segunda pessoa, uma abordagem incomum, que tem o efeito de mergulhar e conectar mais intimamente o leitor às experiências de Maali. Além disso, enfatiza sua descoberta de que os mortos estão sempre por perto, sussurrando para os vivos ou visitando-nos em nossos sonhos, confundindo a linha entre o que são nossos próprios pensamentos e o que está sendo sussurrado para nós.

Maali testemunhou a crueldade das rebeliões no Sri Lanka. Como jornalista e fotógrafo, seu sonho era tirar fotos "que derrubassem governos. Fotos que acabassem com as guerras". Ele fotografou "o ministro do governo que viu os selvagens de 1983 queimarem casas tâmeis e matarem seus moradores", e fez "retratos de jornalistas e ativistas desaparecidos, amarrados, amordaçados e mortos em custódia".

Essas fotos estão escondidas debaixo da cama na casa de sua família. Agora, preso no mundo inferior, ele tem apenas sete luas - uma semana - para se comunicar com sua amiga Jaki e sua prima, convencê-los a recuperar as fotos e espalhá-las por Colombo, a maior cidade do Sri Lanka, para revelar a violência extrema do conflito. Maali é informado de que "cada alma tem sete luas para andar pelo Intermediário. Para recordar vidas passadas. E depois, esquecer. Eles querem que você esqueça. Porque, quando você esquece, nada muda". Maali não quer que seu papel como testemunha seja esquecido. Sua própria morte lhe mostrou a fragilidade da vida, e as fotos são seu legado para seu país e uma defesa contra a amnésia coletiva.

As Sete Luas de Maali Almeida é escrito na segunda pessoa, o que dá à narrativa um leve efeito de distanciamento, mas é compensado pelo humor sarcástico. Em um trecho, o narrador diz: "Você tem uma resposta para aqueles que acham que Colombo está lotada: espere até vê-la cheia de fantasmas". Outro pergunta: "Os animais têm vida após a morte? Ou seu castigo é renascer como humano?" Outra característica atraente é o uso vivo de símiles: o corpo espancado de um homem é descrito como tendo costelas quebradas "como um coco rachado".

As Sete Luas de Maali Almeida é um romance que merece ser lido, tanto pela sua qualidade literária quanto pela sua relevância temática. É uma obra que nos faz rir, chorar, temer e esperar, ao mesmo tempo que nos mostra uma realidade que não podemos ignorar. É uma obra que nos faz lembrar que, como diz Maali, “quando você esquece, nada muda”.

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