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[RESENHA #487] Diálogo dos mortos, de Luciano

LUCIANO. Diálogo dos mortos. Brasília: Editora UnB, 1998. Tradução de Américo da Costa Ramalho

Parece que Luciano de Samósata viveu no segundo século de nosso tempo, nascido por volta de 125 DC. C e morreu depois de 181 DC. C. Sua maturidade como escritor provavelmente ocorreu durante o reinado de Marco Aurélio (161 a 180 DC). Além disso, sabe-se que nasceu na Síria, em Samosata, em uma família de escultores. Não seguiu a carreira a que estava destinado, pois em uma de suas primeiras aulas de carpintaria quebrou uma bolinha de gude e foi severamente repreendido pelos pais. Depois disso, decidiu focar nos estudos e trocou sua cidade natal pela Grécia. Em busca de conhecimento, percorreu boa parte da Europa: foi para a Gália e para a Itália, ganhando a vida como advogado. Ele se tornou um orador famoso, que decidiu deixar seu discurso filosófico, voltar para Atenas e deixar para trás todas as suas realizações. Escreveu obras satíricas e no final da vida, devido a dificuldades materiais, aceitou um cargo de funcionário do Estado no Egito.

Luciano, em alguns de seus escritos, tentou distinguir o historiador do poeta, explicando o primeiro em oposição ao segundo, que só pode ser distinguido do primeiro. Ou seja, para que a história exista, deve haver um poeta e vice-versa. Este terá liberdade pura, pode escrever sobre tudo, enquanto o historiador tem liberdade para a verdade, ou seja, é livre enquanto quiser escrever a verdade. Mas o presente não deve buscar uma sociedade que aceite a obra da história; você está no futuro. Portanto, o trabalho do historiador deve preocupar-se em ser útil para quem o lerá no futuro e, portanto, deve ser um trabalho eterno, buscando a eternidade. Nesse sentido, a liberdade da história reside nisso: ele não deve se preocupar com o que as pessoas hoje pensariam de suas obras, portanto, ele não deve parar de escrever fatos. Preocupado com o futuro, ele não será contido, nem terá permissão para escrever nada, desde que queira a verdade.

Um poeta não precisa da verdade como algo a ser buscado em sua escrita. Então ele pode escrever qualquer coisa, desfrutando de pura liberdade. No entanto, os escritos de Luciano diferiam de outros poetas. Primeiro, ele escreve em prosa, não em poesia, como costuma acontecer. Até então, a prosa permanecia histórica, enquanto a poesia brincava com o sonho, mas não conseguia esclarecê-lo ao leitor. Luciano, ao escolher a prosa, resolveu deixar claro aos leitores que suas obras eram ficção, uma espécie de mentira:

“‘Numa coisa serei verdadeiro: dizendo que minto’. O leitor, portanto, ele continua com surpreendente clareza, não deve crer em nada do que conta, pois ele, Luciano, fala de coisas que jamais viu, jamais experimentou, jamais ouviu da boca de ninguém, que não existem de todo e que não podem existir. Essas declarações, de inegável importância, marcam nada menos que uma espécie de descoberta da ficção na Grécia, a partir da definição de um estatuto que lhe seja próprio e que a distinga, ao mesmo tempo, tanto do discurso mentiroso dos antigos poetas, quanto dos discursos verdadeiros de historiadores e filósofos”.

Neste trabalho me referirei a uma de suas obras mais famosas e influentes, Diálogos dos Mortos3, que faz bom uso de sua forma ficcional para a crítica. Luciano se interessava pela crítica pura, ou seja, não há sentido de transformação ou mudança em suas obras, mas apenas crítica nua, especialmente crítica social, tratando da desigualdade Riqueza.

Portanto, é importante tentar descrever a sociedade sobre a qual Luciano está escrevendo. Uma resposta óbvia é suficiente, e quase suficiente: você escreve para pessoas que sabem ler. Agora, vamos fazer outra pergunta: quem sabia ler no século II dC? C. Grécia? Cidadãos ricos, em geral, filósofos, oradores e outros, não podem ser incluídos na categoria "intelectual". Essas são as pessoas a quem a crítica é dirigida: Luciano critica as práticas dos reinos superiores para os quais escreve. Para conseguir isso, Luciano usa o riso como arma: fazer com que o sujeito seja escarnecido, ridicularizado, rebaixando-o ao ponto de ficar indefeso. Em Dialogs of the Dead, esse recurso é sempre usado, como mostrarei.

No Diálogo X, Caronte, o barqueiro de Hades, explica aos mortos como zarpar:

“Caronte – Eu explicar-vos-ei. É preciso que embarqueis nus, deixando todo esse supérfluo na margem porque, assim como estais, dificilmente o barco poderá receber-vos. 

E tu, ó Hermes, trate, a partir de agora, de que nenhum deles que não venha em pelo seja percebido, depois de jogar fora, como eu já disse, a bagagem. De pé firme, junto à escada, passe-os em revista, receba-os, forçando-os a subirem nus”.

As pessoas devem entrar nuas no Hades e forçar os ricos, como punição por sua riqueza, a se desfazer dela. Luciano entende que riqueza só se entende do ponto de vista dos outros, de se exibir diante de uma classe baixa e riqueza. De fato, a situação imposta pela pobreza é muito difícil e dolorosa, leva a uma difícil vida laboral que pelo menos não pode garantir um modo de vida, é uma vida triste e decepcionante, mas segundo o entendimento de Luciano. , será melhor, mais tolerante se os ricos não ostentarem sua riqueza, felicidade e vida abundante. “Na verdade, a visão profunda da riqueza de poucos versus a pobreza de muitos é o que torna a situação plausível.”

Nesse contexto, Luciano queria criticar a riqueza, queria atingir as classes abastadas. Em suas obras, ele enfatiza a insignificância da diferença no destino, enfatizando como a regra é sinônimo no Hades, como visto no Diálogo dos Mortos:

Hermes – Então, Lampico, apresentas-te com tanta coisa? 

Lampico – O quê? Devia chegar nu, ó Hermes, um homem com funções de tirano?

Hermes – Tirano, coisa nenhuma, mas morto, sim! Portanto, jogue fora tudo isso!

Lampico – Veja, lá vai a riqueza! 

Hermes – Jogue fora também a vaidade, ó Lampico, e a altivez. Caindo aqui dentro, elas farão peso no barco. 

Lampico – Então, deixe-me ao menos ficar com o diadema e o manto. 

Hermes – De modo nenhum, mas jogue fora isso também!

 Lampico – Que seja! O que mais ainda? Lancei tudo fora, como vês. 

Hermes – E a crueldade e a insensatez e a insolência e a cólera, lança tudo isso fora também!

Lampico – Veja bem, estou despido”.

O ditador tem que abrir mão de tudo, glória, poder, esplendor, riqueza, enfim, tudo. Embora isso aconteça com ricos e pobres, eles não são privados de nada, só falta subir no barco e pagar o obol ao barqueiro Caronte. Para Luciano, a morte serve de parâmetro. Todos são iguais, até as beldades são parecidas: são todas carecas, têm órbitas oculares e narizes achatados, então não conseguem distinguir sua beleza.

Esse efeito de equilíbrio tem uma qualidade carnavalesca em sua forma, como apontado por Mikhail Bakhtin:

“Elimina-se toda distância entre os homens e entre em vigor uma categoria carnavalesca específica: o livre contato familiar entre os homens. (…) Os homens, separados na vida por intransponíveis barreiras hierárquicas, entram em livre contato familiar na praça pública carnavalesca.

(…) No carnaval forja-se, em forma concreto-sensorial semi-real, semi-representada e vivenciável, um novo modus de relações mútuas do homem com o homem, capaz de opor-se às onipotentes relações hierárquico-sociais da vida extracarnavalesca”

Essa é a sugestão de crítica social de Luciano em Diálogo dos Mortos, para mostrar que riquezas mundanas e distinções de castas são supérfluas, porque todos morrem, todos são iguais. Brandão oferece uma análise muito interessante sobre isso: ele diz que nos diálogos de Luciano é construída a imagem do "grande teatro do mundo": homens-atores, que representam um cenário distribuído aleatoriamente, ao longo de um determinado período de tempo. Então os papéis mudam e qualquer um pode desempenhar qualquer papel. "Somente com base nos bens a distinção é estabelecida, pois, quando o lugar não existe mais, cada homem volta a ser como era antes de nascer, não diferente de seu próximo em nenhum aspecto. de forma alguma".

Assim, até mesmo os filósofos têm que se desfazer de sua sabedoria:

Hermes – (…) E este, grave, a julgar pela postura, arrogante, de semblante carregado, metido nas suas reflexões, quem é ele, que assim deixou crescer a barba?

Menipo – Um filósofo, ó Hermes, ou antes, um impostor, pleno de charlatanice. Assim, fá-lo despir-se também! Verás muitas coisas, e bem risíveis, que ele esconde sob o manto.

Hermes – Põe à parte a postura, em primeiro lugar, e depois tudo isso mais! Ó Zeus, quanta fanfarronice ele transporta, e quanta cretinice, astúcia, glória vã, perguntas insolúveis, discursos espinhosos e conjecturas intrincadas. E ainda a grande quantidade de esforço vão, a grande tagarelice, as ninharias, a pequenez de espírito, e, por Zeus, todo esse ouro que está à vista e a vida regalada, o descaro, a preguiça, o gozo sensual e a moleza. Nada disso me passou despercebido, por melhor que o escondas. Jogue fora também a mentira, a presunção e a crença que és melhor do que os outros, por que se embarcares com tudo isso, qual o navio de cinquenta remadores, capaz de te receber?”

Até o filósofo teve que se desfazer de sua riqueza, que era completamente sábia e sem sentido no Hades. A isotimia na morte é completa, ninguém pode se sentir maior que o outro. A morte não se vinga de ninguém, torna infelizes os infelizes e infelizes os felizes. Segundo Luciano, ele, apesar de impopular, tem a vantagem na vida de tratar todos com igualdade. Se há mudança na natureza humana, isso só acontece com homens ricos e cultos que são forçados a se desfazer de tudo.

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