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[RESENHA #558] Sonhos no terceiro reich, de Charlotte Beradt

Charlotte Beradt era uma jornalista que morava em Berlim e fugiu para a Inglaterra em 1939 e depois para Nova York em 1940. Ela pediu que as pessoas ao seu redor lhe contassem os sonhos que tiveram entre 1933 e 1939: sua tia, um médico, um leiteiro, uma vizinha, sua costureira, um amigo empresário... Ela reuniu cinquenta desses "sonhos impostos pela ditadura" em seu livro clássico de documentação onírica sonhos no terceiro reich , publicado pela primeira vez em 1966.

Os sonhos revelam como o regime nazista afetou o inconsciente coletivo dos alemães.

O psicanalista Christian Duker assina a apresentação desta obra, apresentando-nos os paradigmas que norteiam os estudos da psicanalise, as contribuições dos relatos de Charlotte e sua vivência familiar durante a ascensão do terceiro reich. O titulo de sua apresentação faz um complemento ao seu conteúdo, chamando-nos a atenção para o que vem a seguir: o sonho como ficção e o despertar do pesadelo.

Após passar um período estudando sonhos e a metodologia do discurso e a forma como a qual se desenvolvem os sonhos na literatura, bem como os reflexos, metodologias e as causas que norteiam estes relatos, o psicanalista apresenta-nos uma série de reflexões acerca dos resultados que reverberam na escrita de Charlotte.

O livro de Charlotte Beradt compõe uma terceira classe de relatos. Ele não propõe uma moral redentora ou punitiva. Ele não apresenta causas ou razões, mas reverbera relatos de sonhos de trezentas pessoas que viviam na Alemanha entre 1933 e 1939. (p. 7 - in. apresentação)

O primeiro capítulo, intitulado "a origem da ideia", a frase usada para representar o anagrama imposto pelo discurso presente na obra é uma citação bíblica do livro de Jó, 33:15-17:

Às vezes em um sonho, em uma visão da noite, quando um sono profundo envolve o homem adormecido em seu leito, Ele apura então os ouvidos do ser humano e lhe faz sua repreensão. - em síntese, o sonho tem o poder de apurar os sentidos do humano por meio da sinestesia dos acontecimentos ao seu redor, de acordo com a citação o homem adquire uma visão expandida de local e acontecimento mais assertiva durante o período do sono.

A ideia de documentar os sonhos veio por meio do sonho de um dono de fábricas, que ao narrar seus sonhos intermináveis da visita de Goebbels, narra um período de perda de identidade, submissão e perda de poder. Os sonhos ocorreram diversas vezes, e sempre com uma particularidade diferente à outra, sempre acrescido de novos traços e características que faziam o homem tremer e temer. Sua narrativa revelou que o medo o rondava constantemente, o fazendo fazer saudações e ter conversas que por si só, jamais teria. Desde então, Charlotte decide começar à relatar em um diário os sonhos de diferentes pessoas, de todas as classes e repartições sociais, claro, enfrentou dificuldades em meio à busca, que acabara pois, fomentada em tristeza e medo coletivo.

Comecei, então, a coletar sonhos ditados pela ditadura. A tarefa não foi muito fácil, pois alguns tinham medo de contar o que sonhavam [...] perguntei as pessoas do meu meio sobre os seus sonhos. Tive dificuldades de achar gente que se beneficiasse do regime ou bajuladores entusiasmados; de todo modo, suas reações intimas não seriam significativas para o meu projeto (in - a ideia p. 31, grifos meus)

Os sonhos descritos, a partir deste ponto, são, em sua maioria, relatos da perda de privacidade, identidade e de um controle mental que se seguia por meio do medo coletivo, todos descreviam sonhos de aprisionamento, vergonha e dor perante o ocorrido, sempre repleto de novas nuances descritivas acerca dos eventos à serem enfrentados, isso pode ser observado, principalmente, no relato de um médico, de 45 anos, após um ano do poder do terceiro reich:

Perto das nove da noite, depois de minhas consultas, quando quero me esticar calmamente no sofá com um livro sobre Matthias Grunwwald, minha sala e apartamento ficaram de repente sem paredes. Olho apavorado ao meu redor, e até onde meus olhos conseguiam alcançar, os apartamentos estão todos sem paredes. Ouço gritarem em meu megafone: "De acordo com o edital sobre a eliminação de paredes, datado do dia 17 deste mês..." (pág. 38 - in. a vida sem paredes).

Uma mulher de trinta anos em Berlim sonhou coisas estranhas logo após Hitler assumir o poder, em 1933. Em um sonho, ela viu que seu bairro não tinha mais os sinais de sempre, mas sim cartazes com vinte palavras banidas; a primeira era “Senhor” e a última era “Eu”. Em outro sonho, ela se encontrou rodeada por trabalhadores de diferentes profissões, como um gaseiro, um encanador, um jornaleiro e um leiteiro.

Nem quando dormiam os alemães tinham paz, sossego e privacidade, descoberto Charlotte, que, durante a pesquisa, trocou de marido, sobrenome (Beradt) e endereços. No Reich nazista as pessoas tiveram sonhos ou pesadelos com assombrações, perseguições, aflições paranóias, trocas de identidade, controle da mente, censura, prisões e tortura.

Ao se falar sobre o Holocausto, um dos questionamentos mais comuns que nos fazemos é "mas o que se passou na cabeça daquelas pessoas? Como elas assistiram a isso tudo aconteceu?". Em 1933, quando Hitler chegou ao poder, a jornalista Charlotte Beradt teve uma ideia brilhante (sério, que ideia maravilhosa) de colher sonhos de alemães comuns (operários, trabalhadores domésticos, donos de fábricas), numa tentativa de historicizar um período crítico talvez da maneira mais subjetiva possível. O que são revelados em imensa escala são a perda da identidade, a despersonalização, a quebra (literal, em um dos relatos) da espinha dorsal da diminuição humana, o estranhamento de si mesmo e a perda de referências, a sensação de isolamento frente a uma massa supostamente unificada, a imensa.

O primeiro sonho foi escutado apenas três dias após o golpe na República de Weimar. A Alemanha Nazista ou III Reich estava começando. Conscientemente, não se imaginava o que aconteceria, mas, em sonhos, as pessoas viviam como realidade o que durante a vida de vigília não conseguiam entender. Se esse sonhos poderiam ser considerados proféticos, é justamente porque mostravam o que era negado? O sonho que fez com que ela iniciasse a coleção lhe foi contado por um dono da indústria. Nesse sonho, que se repetira, esse homem era humilhado por Goebbels. Ao contar o sonho, a voz do homem ficará trêmula. O totalitarismo que levara Hitler ao poder era falado somente em sonhos? 

Sonhado por um oftalmologista de 45 anos em 1934. “As tropas de assalto estavam colocando arame farpado em todas as janelas do hospital. Eu tinha jurado que não toleraria que eles trouxessem seu arame farpado para minha enfermaria. Mas eu aguentei, afinal, e fiquei parado como uma caricatura de médico enquanto eles arrancavam as vidraças e transformavam uma enfermaria em um campo de concentração - mas perdi meu emprego mesmo assim. Fui chamado de volta, no entanto, para tratar de Hitler porque eu era o único homem no mundo que poderia. Fiquei com vergonha de mim mesma por me sentir orgulhosa e comecei a chorar.”


Deve ser assim em todas as ditaduras, mas Charlotte Beradt (1907-1986) foi a primeira a repertoriar os efeitos de um regime autoritário no inconsciente coletivo e a contaminação dos sonhos pelos "restos diurnos" de uma realidade tenebrosa.

Não há dúvida de que os sonhadores estavam processando suas experiências diárias e dúvidas sobre as intenções e métodos de Hitler, mesmo antes que ele os revelasse e os executasse. Se você está interessado em psicologia, sonhos e o meio social da era nazista na Alemanha, esta é uma leitura obrigatória.


A AUTORA
Charlotte Beradt (1907-1986) foi jornalista e ensaísta. De origem judaica, durante a ascensão de Hitler ligou-se ao Partido Comunista alemão. Em 1939, exilou-se com o marido nos Estados Unidos. Escreveu uma biografia sobre o líder comunista Paul Levi e foi a responsável pela edição de cartas de Rosa Luxemburgo.
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