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[RESENHA #486] Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade


ANDRADE, Oswald. Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

Desde sua publicação, em 1924, Memórias sentimentais de João Miramar vem sendo saudado como um dos textos mais instigantes da prosa brasileira. Construído a partir de 163 fragmentos de gêneros diversos, o romance de Oswald de Andrade é um dos abre-alas do modernismo e um precursor das poéticas contemporâneas. O romance retraça a vida de João Miramar, uma espécie de caricatura do homem das classes mais favorecidas - herdeiro da cultura do café, fascinado pelas coisas estrangeiras, distante do cotidiano brasileiro. É uma sátira, selvagem e por vezes melancólica, do veio memorialista da literatura brasileira, em que os filhos das famílias mais abastadas reescrevem sua própria trajetória.

Ficção / Literatura Brasileira

Oswald de Andrade é sem dúvida um dos principais escritores brasileiros. No entanto, seus livros não são tão lidos hoje quanto antes. Quando se fala em modernidade brasileira, pensa-se principalmente em Mário de Andrade, no campo literário, Villa-Lobos na música, Tarsila na pintura... Os livros de Oswald são citados, mas talvez mais por obrigação do que vontade de falar deles. No entanto, são livros mais agradáveis ​​de ler - ou assim eu acho. Por exemplo, Memórias sentimentais de João Miramar, publicado em 1924, sobre o qual falarei bastante aqui, é um texto riquíssimo em termos de criação literária (acredito que seja mais rico que o livro de Mária de Andrade), por criar o so- chamou talvez a língua brasileira, ao invés do uso do português, para desconstruir o esquema do romance romântico, que muitas vezes acaba enfadonho, como a Iracema de José de Alencar para o uso de uma nova estética - Haroldo de Campos aborda o escritor paulista James Joyce e o cubismo de Picasso, Braque e Gertrude Stein (esta última é uma cubista literária).

Uma das primeiras resenhas escritas do livro de Oswald de Andrade foi publicada na revista Estética do Rio de Janeiro na edição de janeiro/março de 1925. Aqui chamam a atenção os autores e fundadores do periódico, Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes Neto a alguns aspectos da construção oswaldiana:

"A infância de Miramar, suas lembranças da São Paulo da época, com os 'gritos do invencível São Bento', a escola de d. Matilde, que lembra um livro com cem personagens e a história de Roldão, Mário de Glório, ' o grande professor do senhor Carvalho', que foi para o inferno, tudo isso aparece num esquema leve e pitoresco. Se, em vez de colocar esses episódios na página 15 ou 16, onde estão, o autor os tivesse colocado na página 119, onde termina o romance, o conjunto teria perdido pouco. Isso não quer dizer que faltou unidade, ação e estrutura ao livro. É a própria personagem de João Miramar que lhe dá unidade e liga todos os episódios. A construção é feita no espírito do leitor. Oswald fornece peças soltas. Eles só podem ser combinados de uma certa maneira. É só juntar e pronto”.1

Quando os críticos dizem que não importa se a narrativa da infância de João Miramar aparece no início ou no final do livro, eles mostram sua construção cubista, ou seja, sua fragmentação sem perder sua linha condutora e unificadora: a própria Miramar. Ora, este estilo cubista só é possível a partir do momento em que o leitor existe, ou melhor, a partir do momento em que o livro se vê como tal e assume que o leitor existe. Essa linguagem fragmentada é, portanto, uma metalinguagem. Ele desmascara o livro como material e como construto estético, desconstrói aquela linearidade romântica da trama e vê o romance, ora modernista ou moderno, como romance e como livro, criando essa metalinguagem que finalmente possibilita a linguagem cubista. . Haroldo de Campos faz a seguinte análise a respeito:

"No caso da prosa miramarina de Oswald de Andrade, o estilo cubista, a operação combinatória ou metonímica nela realizada situa-se ao lado do cubismo histórico, em relação ao mundo exterior ainda é residualmente icônico. No fundo, propõe, através de uma crítica da figura e da forma habitual de representar o mundo das coisas, e através de uma livre manipulação dos pretextos simbólicos disto e daquilo, um novo realismo à altura da civilização da velocidade e da máquina, a civilização. incluiu a cinematografia como sua contribuição mais marcante no elenco das artes. Assim, quando Oswald escreve "um cachorro em manga de camisa latiu na porta barbuda", ele dá à porta as qualidades do porteiro que foi abri-la e define o todo por partes (ou seja, o porteiro pela barba e o mangas de camisa). ) ), está em plena operação metonímica, selecionando elementos fornecidos pela realidade externa e convertendo-os em figuras, para depois combiná-los e hierarquizá-los livremente em uma nova ordem, ditada pelos critérios de sua sensibilidade criativa".

É esse "esquema luminoso e pitoresco" de que falavam Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque de Holanda em 1925. Acrescentando-lhes esta passagem de Haroldo de Campos, fica claro que existe na prosa de Oswald de Andrade (e em a poesia também, mas não vou tratar disso), uma fusão entre a criação literária (estética) e a observação crítica do mundo. É como se fosse preciso criar uma nova linguagem para falar desse novo mundo que tem cinema, automóveis, aviões etc. E os modernistas paulistas daquele período da década de 1920 ainda falavam em criar uma linguagem brasileira, semelhante mas diferente do português. No entanto, ainda não era um consenso que deva ser dito como 'brasileiro', como se depreende das críticas de Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque:

"Seria péssimo se todo mundo começasse a 'escrever brasileiro' a partir de agora e naturalmente cada um do seu jeito. A prova é o próprio Miramar brasileiro, uma tentativa que só frutificou em termos de destruição. Terminou com um erro de português. Mas ele criou a falácia brasileira de que o livro está cheio.”3

Exemplo disso é o capítulo “89. Literatura":

“Fui a Aradopolis, ao lado da fazenda de lembrancinhas de casamento Nova-Lombardia, primeiro com o Dr. Pilatos e meu querido Phileas em uma jornada histórica…”

O verbo conjugado "fordei" (suponho que o infinitivo seria "fordar") sugere que Miramar e seus amigos foram a Aradopole em um carro Ford, um dos símbolos da indústria moderna. E "Fordei in First" significa que você usou a primeira marcha para chegar ao seu destino. Além disso, "fordei" assume uma função cômica, pois remete, em última instância, à "fazenda das memórias nupciais da Nova Lombardia", implicando o verbo "foder", transformado em "fordei" ("fordar", que pode ser cognato, também com a forma nominativa do verbo foder: foda).

Outra passagem interessante que gostaria de destacar está no capítulo “80. Resultado da Profecia':

“As notícias da guerra, mutiladas como soldados em fuga, chegaram com a França quando esta foi invadida e Paris ameaçada.”

Há certamente uma fusão entre a forma como as notícias chegam e o que dizem, já que as mutilações e os soldados em fuga certamente fazem parte dos temas, que é precisamente como as notícias chegam na prosa de Miramarine. Isso significa que eles chegam fragmentados (mutilados), muitas vezes não oficialmente (em fuga). Este, aliás, é mais um exemplo de cubismo de Oswald de Andrade, que aqui se refere a si mesmo quando fala de "notícias de guerra mutiladas como soldados em fuga". Como soldados mutilados, também as notícias chegaram mutiladas (e aqui podemos falar das várias razões desta mutilação: censura, dificuldades na transmissão da notícia, especulações, etc...) e igualmente mutilado está este período reunido.

Gostaria de chamar a atenção para outro ponto, também relacionado à linguagem: "Como prefácio", escrito por Machado Penumbra, que introduz o livro com sua linguagem incisiva. Talvez seja representativo dessa pomposa escrita acadêmica. Ele pode ter sido um daqueles contra o renascimento literário proposto pelo modernista, mas aprova-o, como se depreende de um dos últimos parágrafos do prefácio:

“O facto é que a obra plasmática de uma língua modernista nascida da mistura do português com os contributos de outras línguas que imigraram entre nós, embora tenda paradoxalmente para a construção da simplicidade latina, não deixa de ser interessante e original. Há apenas uma coisa que me oponho aos embargos legítimos - e isso é quebrar as regras normais de pontuação. Isso leva a uma confusão deplorável, embora sem dúvida evoque uma sensação de "grande forma de frase", como diz Miramar pro domo sua".

Quando Oswald de Andrade escreve essa passagem, de certa forma apresenta uma possível crítica que sua obra pode receber, sem perder o ponto irônico na adoção dessa linguagem modernista por Penumbra, que a meu ver é um conservador chave na mão. caudas.

Memórias sentimentais de João Miramar foi publicado em 1924, ano chave do modernismo para o filósofo Eduardo Jardim de Moraes. O autor divide o modernismo brasileiro em duas fases: 1. - de 1917 a 1924, “caracterizado como uma polêmica entre modernismo e pastismo. Foi uma fase de actualização - modernização, em que se fez sentir fortemente a absorção das realizações das vanguardas europeias da época e que se prolongou até ao ano de 24".7 A segunda fase iniciou-se em 1924, "quando o modernismo começou a aceitar a a questão do desenvolvimento de uma cultura nacional era primordial e perdurou até 1929.”8 Portanto, o livro de Oswald de Andrade, aqui analisado, está bem no meio dessa divisão. Ao mesmo tempo em que faz parte da primeira fase - e isso fica evidente quando se nota a presença do cubismo, como já mostrado, na estética criadora do autor - ele já aponta para a segunda - sobretudo com sua linguagem brasileira.

A Penumbra de Machado de que falei pode ser interpretada como um membro desse pastismo contra o qual o modernismo luta em sua primeira fase. O tom irônico desse personagem é justamente a aceitação da obra de Miramar. E nisso já podemos ver um passo rumo à segunda fase, “elaboração da cultura nacional”, pois o prefácio aceita a linguagem modernista criada pelo autor, mas não concorda com a pontuação.

Na fase 1917-1924, o que importava era a modernização e atualização da arte brasileira, como diz Eduardo Jardim:

“O importante que foi valorizado acima de tudo foi o fato de a obra ser moderna ou apresentada em nosso meio cultural. E ser moderno significava tudo o que se opunha aos cânones do passado, que até então dominavam a cultura nacional.”

Nesse sentido, esta resenha da revista Estética já mostra claramente que Memórias sentimentais de João Miramar é considerado um livro moderno:

“O Miramar é moderno. Um modernista. Sua frase tenta ser verdadeira, mais do que bonita. Miramar escreve mal, escreve mal, escreve mal: um grande escritor. Transposição de planos, imagens, memórias. Miramar está confuso para melhor esclarecer. Brinque com as palavras. Brinque com as ideias. Brinque com as pessoas. Principalmente ele é um brincalhão." 

Logo no início desta seção, os autores, representantes da jovem crítica modernista, afirmam claramente: “Miramar é moderno. Modernista". A partir daí, pode-se dizer do livro: "Miramar escreve mal, escreve mal, escreve mal: um grande escritor". Por que um grande escritor quando escreve mal, mal e mal? Precisamente porque é um modernista e pretende opor-se aos "cânones pastistas".

Mais tarde, na segunda fase modernista, iniciada em 1924, após a modernização-atualização da arte brasileira, a questão da brasilidade em geral passou a ocupar o centro das atenções, como diz Eduardo Jardim Moraes no terceiro capítulo de seu livro (o mais interessante do meu ponto de vista):

"Esta mudança de abordagem, comum a todos os métodos modernos, começou a tornar-se evidente, mostrando que o problema da inovação estética, existente em anos anteriores, cedeu, a partir de 1924, ao interesse desenvolvimentista até 1930. na definição da literatura nacional, em segundo lugar expandindo e desenvolvendo a primeira literatura, construindo projeto de projeto de cultura nacional em sentido amplo”.

Sérgio Buarque de Holanda, agora encara o problema de outra forma. Para ele, que divide as classes modernas de outra forma, via na primeira forma, correspondente ao período da década de 1920, uma tendência “regional”:

"Mas a tentativa de 'regionalizar' a primeira geração moderna não foi apenas inconsciente e não se limitou à arte e à poesia. Na época, era desejo do país conduzir alguns dos grandes. Seus representantes viajam sozinhos ou em grupos, pelas antigas cidades de Minas Gerais, do Nordeste, do Extremo Norte e até do Acre. É também o que determina, em grande parte, a constante preocupação e sua repercussão em nossas culturas tradicionais e populares, seu interesse por nossas casas coloniais, sua avaliação de Aleijadinho, seu estudo da humanidade, desenvolvimento da música cult e popular, esforços de aprendizagem e edição de voz brasileira”.

Só para esclarecer a taxonomia modernista: a primeira classificação enfatizada por Sérgio Buarque inclui a segunda por Eduardo Jardim. Apesar dessas diferenças, os dois autores concordam sobre o nacionalismo. Outro ponto em que ambos os autores concordam é sobre a influência dos líderes europeus no modernismo brasileiro, o que parece contraditório, já que na Europa eles buscam obras clássicas fora do continente. Por exemplo, Picasso seguiu a arte clássica africana, enquanto Blaise Cendrars foi para o Brasil.

Então, se esse é um movimento que sai e olha para o original, como o pioneiro brasileiro via sua pátria? O historiador explica:

"no Brasil, onde alguns desses 'exóticos' não são necessariamente coisas que vêm de outros países, mas, ao contrário, estão integrados à condição humana de nossos ancestrais, investigá-los pode e deve ser confundido com a investigação de nossas origens , e a investigação de nossas origens. a glorificação, com a glorificação de nossa estranheza." 

Ou seja, é a aparência, a atenção dos modernistas brasileiros às últimas produções artísticas européias, que é a causa da atenção dada ao pano de fundo, a rara e antiga cultura popular brasileira. Então, quando Eduardo Jardim falou do primitivismo como solução para os problemas da Europa, ele estava certo quando disse:

“É claro que quando foi transferida para o Brasil, essa solução teve as mudanças que os próprios brasileiros desejavam. O terreno cultural em que surgiu esse problema no Brasil e na Europa é muito diverso e por isso o simples fato de haver uma conexão entre as regiões culturais da Europa e do Brasil não nos permite distinguir integrando o caso do Brasil usando os mesmos dados . Analisamos os casos dos melhores europeus.” 14

É por essa "terra cultural" do Brasil, diferente da terra da Europa, que os modernos daqui, como diz Sérgio Buarque, veem no Brasil algo de inusitado e estranho nesse país. A propósito, Oswald de Andrade dedicou seu Pau Brasil "A Blaise Cendrars na época do descobrimento do Brasil". Esse episódio é narrado por Aracy Amaral, em seu livro Blaise Cendrars no Brasil e os modernistas.15 O autor quis acompanhar a visita do poeta francês ao Brasil, mostrando sua influência sobre Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral, quando o casal era ainda se formando. Os Cendrars podem ter sido os protagonistas da famosa viagem do grupo modernista de São Paulo ao interior de Minas Gerais e da consequente (re)descoberta do Brasil. Foi nesse período que surgiu, entre outros, o Aleijadinho, até então desconhecido e esquecido, como menciona Sérgio Buarque no referido artigo.

A preocupação era, portanto, que os modernistas brasileiros tinham de atingir os pioneiros europeus (e Cendrars, na época, era um dos principais executores da poesia de vanguarda francesa, ou seja, mundial), é mostrada neste caso o encontro de Cendrars com Oswald , que leva ao descobrimento do Brasil. Segundo Sérgio Buarque de Holanda, "Mais uma vez o Brasil foi 'encontrado', e reencontrado por acaso".

Na análise de Eduardo Jardim Moraes:

“Agora que nos atualizamos/modernizamos com a 22ª missão, o papel que se nos apresenta é regional, em sentido global, e puramente em nosso tempo. requer uma pré-aplicação do processo de desmonte da cultura brasileira em aspectos abstratos da realidade. Aqui se faz um trabalho em dois níveis: no primeiro nível, é preciso penetrar na misteriosa cultura estrangeira que existe há quatro séculos, e depois , no segundo nível, criar uma visão.um novo olhar sobre a realidade, de um mundo redescoberto.Essa é a ideia do pau-brasil: "Ver com olhos livres para ver": Mas essa ideia só vai acontecer quebrando ideias falsas., formulando outras ideias para colocá-las em seu devido lugar, para finalmente alcançar a livre apreensão da verdade da nação. nosso passado e presente educacional. Mas agora esse debate oferece uma perspectiva diferente. Já não se trata de lutar contra o passado em nome da inovação/modernidade, mas de introduzir um nacionalismo no processo de renovação: só seremos modernos se não os ouvirmos.”

Nesse sentido, Memórias Emocionais de João Miramar é um livro muito importante e enriquecedor para a compreensão da modernidade brasileira. Não apenas da década de 1920, mas da chamada "45ª geração" e produtos de arte posteriores. Este livro de Oswald de Andrade é inovador na linguagem brasileira e na integração de estéticas de vanguarda vindas de fora, como o cubismo. Porém, como mostram Sérgio Buarque de Holanda e Eduardo Jardim Moraes, nenhuma integração é inocente: há sempre uma preocupação sobre qual país é e qual é o Brasil. Dessa forma, o cubismo de Oswald trabalha para representar a modernidade de São Paulo, como disse Haroldo de Campos. Carros, filmes, trens, aviões. A velocidade é indicada por um texto de letra variável e sem pontuação. O enquadramento cinematográfico também está aí: diferentes interpretações de cenas que exigem do leitor uma interpretação, como um filme gravado fora de ordem cronológica que se confunde, às vezes até aleatório, deixado de lado. , final. , editor para dar significado e significado. O mesmo vale para Memórias de Miramar, onde o leitor é responsável por “editar” e criar sentido.

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