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[RESENHA #483] Recordações do escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto

BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Em sua introdução às Recordações do escrivão Isaías Caminha, obra de estreia de Lima Barreto, Alfredo Bosi afirma logo no início de seu texto que o autor "adota as fontes da escrita realista autobiográfica, sobre a qual Flaubert já trabalhou em tom reflexivo em Educação Sentimental e nos romances do primeiro Humilhação e Insulto de Dostoiévski e Memórias de uma Casa Morta.”[1] De fato, há muitas referências à vida de Lima Barrett na história de Isaías, mas acredito que o romance termina evitando isso. algumas das histórias autobiográficas.

Acho que Lima Barreto está muito mais próximo de Dostoiévski do que de Flaubert. É verdade que há realismo em sua obra, mas há passagens importantes das Memórias que são citações indiretas do escritor russo. Um leitor atento das Memórias do subsolo logo notará que no seguinte trecho da jornada do Caminho há uma referência à vida desse humilde funcionário de Dostoiévski:

“Num relâmpago, passaram-me pelos olhos todas as misérias que me esperavam, a minha irremediável derrota, a minha queda aos poucos – até onde? até onde? E ficava assombrado que aquela gente não notasse o meu desespero, não sentisse a minha angústia… ‘Imbecis!’, pensei eu. Idiotas que vão pela vida sem examinar, vivendo quase por obrigação, acorrentados às suas misérias como galerianos à calceta!” (p. 121).


A camada inferior a que o empregado é exposto em Memórias de subsolo foi reinterpretada de certa forma por Lima Barreto. A Rússia de meados do século XIX era uma sociedade extremamente hierárquica, e é isso que incomoda o herói do romance de Dostoiévski, porque ele é culto, inteligente, com boas ideias, dignidade e um funcionário humilde - o que a priori o torna desprezível. Algo semelhante está acontecendo no Rio de Janeiro de Lima Barreto. Isaías também é desprezível e igualmente culto, bem-humorado e inteligente. O Brasil do final do século XIX, já republicano, não tem uma hierarquia definida oficialmente, mas existe uma certa cultura, uma certa forma de organizar a sociedade, que exclui e despreza os negros. Isaías Caminha, assim como Barreto, é negro e isso o desqualifica a priori, assim como o personagem de Dostoiévski.

A propósito, em uma novela russa, o personagem principal de uma determinada passagem anseia por uma luta; enquanto caminhava pelas ruas de São Petersburgo, ele vê um homem jogado da janela de uma casa de bilhar e deseja ser jogado também, tal era seu sentimento de ansiedade e indignação. Ele entra no estabelecimento procurando briga: 

“Logo de início, um oficial teve atrito comigo.

Eu estava em pé junto à mesa de bilhar, estorvava a passagem por inadvertência, e ele precisou passar; tomou-me então pelos ombros e, silenciosamente, sem qualquer aviso prévio ou explicação, tirou-me do lugar em que estava, colou-me em outro e passou por ali, como se nem sequer me notasse. Até pancadas eu teria perdoado, mas de modo nenhum poderia perdoar que ele me mudasse de lugar e, positivamente, não me notasse.

O diabo sabe o que não daria eu, naquela ocasião, por uma briga de verdade, mais correta, mais decente, mais – como dizer? – literária! Fui tratado como uma mosca. Aquele oficial era bem alto, e eu sou um homem baixinho, fraco. A briga, aliás, estava em minhas mãos: bastava protestar e, naturalmente, seria posto janela afora. Mas eu mudei de opinião e preferi… apagar-me, enraivecido.”

O oficial fica indignado porque nem mesmo é notado pelo oficial, que simplesmente o pega pelos ombros e se afasta como se ele fosse uma mosca varrida da mesa. Ele imediatamente quer lutar contra o oficial, mas "em vez disso ... eu me apaguei de raiva". No romance de Lima Barrett, em determinado momento da narrativa, Isaías sente algo semelhante ao andar de bonde:

            “Um sujeito entrou no bonde, deu-me um grande safanão, atirando-me o jornal ao colo, e não se desculpou. Esse incidente fez-me voltar de novo aos meus pensamentos amargos, ao ódio já sopitado, ao sentimento de opressão da sociedade inteira… Até hoje não me esqueci desse episódio insignificante que veio reacender na minha alma o desejo feroz de reivindicação. Senti-me humilhado, esmagado, enfraquecido por uma vida de estudo, a servir de joguete, de irrisão a esses poderosos todos por aí.” (p. 122).

Ambos os personagens querem ser notados. Quem esbarra neles, quem os empurra, não os vê como gente, mas como algo desprezível. Alguém pediria desculpas a alguém que foi incomodado; mas para isso é preciso ver o outro - certamente o oficial russo e os passageiros do bonde não viram o oficial inferior e Isaiah, pelo menos não como pessoas.

Após o episódio ocorrido na casa da piscina, o personagem de Dostoiévski anseia por um pedido de desculpas que não vem. Ele então começa a visitar a Avenida Nevsky e planeja uma maneira de o policial notá-lo, percebendo que seu "inimigo" frequenta a mesma Nevsky. Seu plano é encontrar este oficial para ser notado: 

“Do modo como eu me preparava e ajeitava para aquilo, parecia que mais um pouco e íamos dar o encontrão; mas reparava e… mais uma vez eu tinha cedido caminho, e ele passava sem sequer me notar. […] De uma feita, até me decidira de vez, mas, por fim, apenas caí diante dele, porque, no instante derradeiro, à distância de uns dois vierchokes, faltou-me coragem.”

Isaías Caminha também tem vontade de ser notado, de ser considerado uma pessoa nesta sociedade brasileira do início do século 20, mas porque era desprezado... 

“Veio-me um assomo de ódio, de raiva má, assassina e destruidora; um baixo desejo de matar, de matar muita gente, para ter assim o critério da minha existência de fato. Depois dessa violenta sensação na minha natureza, invadiram-me uma grande covardia e um pavor sem nome: fiquei amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos contrapesos da sociedade; senti-os por toda parte, graduando os meus atos, anulando os meus esforços; senti-os insuperáveis e destinados a esmagar-me, reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente.” (p. 121).

Essas passagens certamente são apenas fragmentos dos textos analisados, mas servem como exemplo do ponto de aproximação que existe entre Lima Barret e Dostoiévski. E assim como o romancista russo, o brasileiro não se preocupará em escrever um romance autobiográfico. Se elementos específicos do autor aparecem na vida de seus personagens, isso não torna o romance autobiográfico. Essas referências servem como pontos de encontro entre ficção e realidade. Um bom leitor de Dostoiévski certamente conseguirá identificar várias passagens de seus escritos que foram inspiradas em acontecimentos de sua vida - por exemplo, o romance Um jogador. No entanto, o que está em jogo não é uma descrição autobiográfica, mas a percepção da sociedade e dos sentimentos nela presentes. Ao descrever o evento na casa de bilhar, o autor russo não deseja descrever apenas os eventos, como faria um historiador do século XIX; lida com a descrição de um estado de espírito.

Da mesma forma, Lima Barreto não lida com referências autobiográficas. Se assim fosse, suas Recordações de Isaías Caminha seriam um romance duplamente autobiográfico. Parece-me que o esforço do autor, ou seja, Lima Barret e Isaías Caminha, é descrever um determinado estado da sociedade; a parte principal do trabalho não são os acontecimentos, mas um certo sentimento. Isso parece óbvio na passagem metalinguística: 

“Penso – não sei por quê – que é este meu livro que me está fazendo mal… E quem sabe se excitar recordações de sofrimentos, avivar as imagens de que nasceram não é fazer com que, obscura e confusamente, me venham as sensações dolorosas já imortais? Talvez mesmo seja angústia de escritor, porque vivo cheio de dúvidas, e hesito de dia para dia em continuar a escrevê-lo. Não é o seu valor literário que me preocupa; é sua utilidade para o fim que almejo.” (p. 136).

Pode-se imaginar com o que Isaías está doente. As passagens citadas até aqui são de sofrimento. Vale lembrar que as memórias são escritas por Isaías quando lemos o livro e, portanto, os sentimentos presentes no personagem são atuais (se o personagem Isaías e o autor das memórias forem os mesmos e de qualquer forma o momento estiver presente Lima Barreto).

Em Recordações do escrivão Isaías Caminha, Lima Barreto pretende escrever um romance sobre preconceito, humilhação social, cordas, roldanas e o equilíbrio da sociedade. As primeiras páginas do livro dão o tom. Isaías descreve como foi maltratado quando chegou ao Rio de Janeiro. As pessoas, sem conhecê-lo, o tratavam como inferior, e ele, inocente e sem saber o motivo de tal tratamento, se questiona sobre sua aparência, sua própria moral, como se o problema estivesse mesmo nele e não na discriminação social. de preto.

Assim como em Dostoiévski, Recordações utiliza elementos autobiográficos e fatos reais (como a menção ao motim da vacinação, presente no romance como uma lei que exige o uso de calçados) para tratar de um assunto que está fora da pessoa de Lima Barreto e Isaías Caminha; o livro trata do preconceito, do sentimento de quem é agredido por ele. 

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