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Resenha: Escreva muito e sem medo, de Albert Camus e Maria Casarès

Foto: Arte digital


APRESENTAÇÃO


Em 19 de março de 1944, Albert Camus e Maria Casarès se conhecem na casa de Michel Leiris. A ex-aluna do Conservatório de Arte Dramática de Paris, nascida em Corunha e filha de um político espanhol forçado ao exílio, tem apenas 21 anos. Ela havia começado a carreira em 1942, no Théâtre des Mathurins, mesmo ano em que Camus publicara O estrangeiro pela Gallimard. Na época, o escritor morava sozinho em Paris. Por causa da guerra, acabou afastado da esposa, Francine, que havia ficado em Orã, na Argélia.

Sensível ao talento da atriz, confiou-lhe o papel de Martha na estreia de O mal-entendido, peça de sua autoria, em junho de 1944. Em 6 de junho do mesmo ano, na noite do Dia D, Albert Camus e Maria Casarès tornaram-se amantes. Esse era só o preâmbulo de uma grande história de amor que só deslancharia de fato em 1948.

Tendo como pano de fundo a vida e as atividades criativas dos amantes (livros e congressos no caso do escritor; a Comédie-Française, turnês e o Teatro Nacional Popular no caso da atriz), a troca de correspondências revela a intensidade do relacionamento, vivida não só na ausência e na privação como também na compreensão da necessidade dessa separação, no ardor do desejo, na felicidade dos dias compartilhados, nos trabalhos em comum e na busca pelo verdadeiro amor, com sua perfeita formulação e plena realização.

Sabe-se que a obra de Albert Camus é atravessada pela ideia e pela experiência do amor. A publicação desta enorme troca de correspondências revela uma pedra angular de uma preocupação constante em seu trabalho. “Quando se ama alguém, ama-se para sempre”, confidenciou Maria Casarès muito depois da morte de Albert Camus; “quando não se esteve mais sozinho uma vez, nunca mais se estará”.



Foto: Arte digital



RESENHA



Maria Casarés e Albert Camus se encontraram em Paris em um momento turbulento da história, durante a Segunda Guerra Mundial. Ela, uma jovem de vinte e um anos, e ele, um homem de trinta, estavam vivendo em meio às incertezas e perigos da ocupação alemã. Ambos tinham em comum a experiência do exílio, Maria por conta do regime de Franco e Camus por ser originário da Argélia. Em meio a esse contexto conturbado, os dois se apaixonaram e viveram um intenso romance. A resistência fazia parte da vida de Camus, enquanto Maria mostrava coragem e determinação em seus atos. Mesmo com a volta de Francine Faure, a esposa de Camus, em outubro de 1944, Maria e Albert não conseguiram se manter afastados e voltaram a se unir.



Foto: konyvesmagazin / reprodução



Albert Camus e Maria Casarés se conheceram na casa de Michel e Zette na representação-leitura de Le Désir attrapépar la queue, de Pablo Picasso, em 19 de março de 1944. O escritor oferece à jovem atriz, o papel de Martha em O mal entendido. Iniciado os ensaios, ele se encanta por ela. Na noite de 6 de junho de 1944, depois de uma reunião na casa do diretor Charles Dullin, no exato dia do desembarque das tropas aliadas na Normandia, eles se tornaram amantes. A atriz então se separa de Jean Bleynie, de uma família de viticultores de Bordeaux, amante que sucedera no início de 1947 ao tempestuoso ator belga Jean Servais (191001976). Nesta mesma época, Camus assina como Michel as cartas enviadas à Maria.


Maria foi fruto do relacionamento de Gloria Pérez Corrales com o advogado galego Santiago Casarès Queiroga, em 25 de outubro de 1920, dando luz à Maria no dia 21 de novembro de 1922. Sua mãe, Glória Casarès, morre então em 10 de janeiro de 1946, no Hospital de Curie de Paris, aos cinquenta anos. As cartas de Maria nos colocam de frente a uma atriz de talento imensurável, descrevendo através de suas palavras sua força, coragem e suas fraquezas. Ela atuava no Comedie-Française e do Teatro Nacional Popular (TNP), atuando ao lado de Michel Bouquet, Gérard Philipe, Marcel Herrand, Serge Reggiani, Jean Villar e ama todos eles.


Já Camus escreve de forma mais concisa e direta, suas cartas revelam uma saudade latente sempre presente de Maria, ele descreve rua escrita, projetos, reuniões, sua paixão pela escrita, pelo teatro e a constante atenção dada aos atores e ao compromissos. Ele militava na resistência. De ascendência espanhola pela mãe, tuberculoso como Santiago Casarès Queiroga e também exilado, já que originário da Argélia. (ps. 53 - versão digital, kindle)


Durante doze anos, eles viveram um amor intenso e cheio de emoções. Maria, com seu talento de grande atriz, revelava sua intensidade em cartas e em suas atuações no rádio e no cinema. Os imprevistos da vida não conseguiram separá-los, e mesmo com a morte de Camus em janeiro de 1960, o amor que viveram permaneceu vivo na memória de todos que os conheceram. A história de Maria Casarés e Albert Camus é um testemunho de amor intenso e verdadeiro, que resistiu aos desafios e às adversidades da vida. Seu encontro em Paris, em meio à guerra, marcou o início de uma história de amor que transcendeu o tempo e as dificuldades, mostrando que o amor verdadeiro é capaz de superar qualquer obstáculo.


As correspondências de escreva muito e sem medo, datam dos anos 1944 - 1946 - 1948 - 1949 - 1950 - 1951 - 1952 - 1953 - 1954 - 1955 - 1956 - 1957 - 1958 e 1959, em um total de 1.288 páginas. 


As cartas de Camus são mais frequentes e mais concisas com um desenvolvimento mais trabalhado, reflexos de seu hábil trabalho como escritor, porém, traduziam em igual intensidade o amor e os sentimentos que correspondia, bem como suas dúvidas de escrita, o ofício e o trabalho, apesar da tuberculose.



Confira algumas das correspondências apaixonadas entre Albert Camus e Maria Casarès:



Em junho de 1944, Camus escreve à Maria Casarès:


Uma hora [da manhã] [junho de 1944] 


Ma pequena Maria, Acabei de voltar para casa, não quero dormir de jeito nenhum, e tenho uma vontade tão grande de ter você perto de mim que tenho que sentar na minha mesa para conversar com você da única maneira que posso. Não ousei dizer ao Marcel [Herrand] que não queria ir beber o champanhe dele. E você estava com tanta gente! Mas depois de meia hora, eu estava farto, só precisava de você. Eu te amei muito, Maria, essa noite toda, vendo você, ouvindo sua voz que se tornou para mim insubstituível enquanto ia até Marcel, encontrei um trecho de texto para a peça. Não consigo mais ler sem te ouvir, é a minha maneira de ser feliz com você. Tento imaginar o que você faz e me pergunto por que você não está aqui. Digo a mim mesmo que o que estaria na regra, na única regra que conheço, que é a da paixão e da vida, é que você volte para casa amanhã e terminemos juntos uma noite que teríamos começado juntos. Mas também sei que isso é vão e existe todo o resto. Mas pelo menos não se esqueça de mim quando me deixar. Não se esqueça também do que lhe contei extensivamente em minha casa, um dia, antes que tudo corresse. Naquele dia eu te disse do fundo do coração e gostaria, gostaria muito que fôssemos um para o outro como eu disse que deveríamos ser. Não me deixe, não posso imaginar nada pior do que perder você. O que eu faria agora sem aquele rosto onde tudo me sacode, essa voz e também esse corpo pressionado contra mim? Além disso, não é isso que eu queria te contar hoje. Mas apenas a sua presença aqui, a necessidade que tenho de você, o meu pensamento desta noite. Boa noite meu querido. Espero que amanhã chegue rápido e todos os outros dias em que você será mais meu do que essa peça maldita. Eu te beijo com todas as minhas forças. 


(AC)

María Casares y Albert Camus en una imagen de 1948.
(Album / Rue des Archives / Bridgeman Images / Rene Saint Paul) Otras Agencias



43. Maria Casares para Albert Camus  Natal [1948]


Você se foi, meu amor, e eu fiquei aqui cheio de você, coberto, todo embrulhado em você. E como tive medo desse encontro de Natal! E agora, amanhã, você terá ido embora, muito, muito longe, e onde quer que eu vá, ainda posso sentir o calor do seu corpo.  Não entendo por que sua presença constante em meu coração não é suficiente para me fazer feliz, e às vezes fico com raiva de mim mesma por querer mais. Mas o que você esperava?! Se estou sentado em casa em frente à lareira, como estou agora, por que não sentiria a necessidade de você estar comigo e vigiar o fogo juntos? 


Se eu saio do meu apartamento e vejo algo na rua ou em qualquer lugar que me ofende, me ofende ou me faz rir, por que não deveria buscar o seu olhar? Quando vou para a cama, como posso não sentir que você não está comigo? Se alguém fala comigo, como posso não pensar na sua boca? Se alguém olhar para mim, para os seus olhos? E o seu nariz, as suas mãos, a sua testa, os seus braços, as suas pernas, o seu corpo, as rugas do seu rosto, o seu sorriso?

Oh, o temperamento está pegando! Mas porque não? Encontrei o Maravilhoso, mas só pode ser meu com autorização e em horários pré-combinados! Como posso não me rebelar?

Quero você em todos os lugares, em tudo e em todos, e sempre. Sim, sempre, e só não me diga coisas como "se..." ou "talvez..." ou "desde que...". Eu quero você, eu sei, você se tornou minha necessidade básica e usarei meu coração, minha alma, toda minha vontade e até minha crueldade se for preciso para te tornar minha.

Se você discorda, se escolhe manter a calma, se tem medo, diga isso e fique de lado.

Eu irei até o fim. Posso perder o seu amor. Sinto muito também! Eu assumo o risco. Talvez a vida que escolho para mim seja cheia de ansiedade e tristeza. Sinto muito também!

A escolha é sua. Ainda temos tempo, diga-nos o que você escolhe. Isso é tudo que peço. O resto depende de mim.

Estou falando fora de contexto?... Não, sinto que o cachorro está enterrado aqui. Até agora não fiz nada, nem pensei em fazer nada para mudar a nossa vida. Mas acredite, mesmo a minha única determinação pode mudar muitas coisas.

Casado?

Tenho certeza do meu amor por você e me sinto capaz de superar qualquer coisa. Chegou a hora de escolher: devo escolher a vitória ou devo continuar a me render ao lindo sentimento de piedade e generosidade, como tenho feito até agora? O poder da fraqueza é enorme, mas não vejo por que não deveria ser comparável ao poder do meu amor talvez atraente, mas proibido. Alguém tem que estar infeliz, e nesses casos escolhemos sempre a solução que nos deixa infelizes, porque assim nos sentimos menos culpados. É por isso que nunca te pedi nada.

Mas não nasci para uma vida de sacrifício; o sacrifício é uma grande honra e até felicidade para alguns, mas não para mim (a fada que não foi convidada para a festa). Está drenando minha alma e me matando. Devo agir e ganhar ou perder.


Foto: seminci / Maria Casarès, a mulher que viveu mil vidas


María Casarès, de uma carta à Albert Camus, junho de 1950:

“Nos conhecemos, nos reconhecemos, nos abandonamos um ao outro. Vivemos um amor pelo cristal puro e ardente. Você percebe a felicidade que temos e o que nos foi dado?”




Em sexta-feira à noite, 11 horas [7 de junho de 1944]

Esta noite tenho vontade de me voltar para você porque estou de coração pesado e tudo me parece difícil de viver.



Um dos trechos mais fortes e impactantes [para mim] são de uma carta escrita em uma sexta-feira, 11 horas no dia 7 de junho de 1944 de Camus à Casarès:



[...] Até o momento você amou em mim o que eu tinha de melhor. Talvez ainda não seja amar. E talvez só me ame realmente quando me amar com minhas fraquezas e meus defeitos. Mas quando e dentro de quanto tempo? Que coisa magnífica e terrível ter de se amar também no perigo, na incerteza, num mundo que está desmoronando e numa história em que a vida de um homem pesa tão pouco. Não terei mais paz enquanto estiver privado do seu rosto. Se você não vier, terei paciência, mas paciência no sofrimento e na secura do coração.



44. Albert Camus para Maria Casarès
Domingo, 22h [1948 26 de dezembro]

Dia ruim. Cheguei esta manhã e não consegui dormir à noite. O avião flutuou lentamente entre as estrelas. O mar acima das Ilhas Baleares estava cheio de estrelas. Pensando em você. E depois um dia inteiro numa clínica, com uma senhora idosa que nem sabe o quão perto estava da morte. Felizmente, a minha mãe estava lá e, graças à sua bondade e total indiferença, todos os pensamentos perturbadores são evitados. . (Aprendi com o exemplo dele que os dois se dão bem.) À noite tive vontade de passear pela cidade, que estava completamente vazia, como sempre fica depois das 9. E depois há a chuva forte, mas sempre de curta duração. Na cidade deserta me senti no fim do mundo. Mas esta é a minha cidade. Voltando ao meu quarto (moro em um hotel) senti que iria te encontrar ali e que algo colossal finalmente começaria. Mas a sala estava vazia, então resolvi escrever para você.

Você está comigo desde ontem, nunca te amei com tanta paixão como lá em cima, voando no céu noturno, de madrugada no aeroporto, nesta cidade onde agora sou um estranho, na chuva do porto. ... Se eu perder você, vou me perder - esta é a minha resposta à sua pergunta, que estou gritando com você agora.

Mas tenho que dormir, mal consigo ficar de pé. Eu só queria contar a história de um dia que foi repleto de você em todos os sentidos. Vou ficar aqui até minha próxima cirurgia em duas semanas. Escreva, não me deixe sozinho. Fui dominado por pensamentos deprimentes, algum tipo de sentimento ruim. Oh querida eu preciso de você. Mas também há algo de belo na maneira como me arrasto, como foi esta noite, quando o cansaço e a ternura me derrubaram. Eu te beijo, meu amor, demoradamente, mas com cuidado para recuperar o fôlego.

- A

45. Albert Camus para Maria Casarès
Segunda-feira, 10h [1948 27 de dezembro]

Acho melhor não ler o que escrevi ontem, entorpecido pelo sono, tão sombrio quanto as ruas de Argel debaixo de chuva. A luz do sol inundou meu quarto esta manhã. Dormi dez horas, mas não sonhei, foi como um sono depois de fazer amor. Um lindo dia nos cumprimentou. Já esqueci que Argel é a cidade das manhãs.

Hoje estou almoçando na casa da minha mãe, no subúrbio, onde passei toda a minha juventude.

Como foi seu almoço ontem? Eu daria metade do meu braço (estou exagerando, claro) para passear com você na praia esta manhã e fazer você se apaixonar pelo que eu amo, sua eterna cânfora garota feia. Olha, o sol está brilhando no papel e estou escrevendo essas linhas no meio de uma poça dourada. (Ontem li num livro a seguinte definição do sol: o cruel olho dourado da eternidade. Mas Rimbaud tem mais razão: a eternidade é o abraço do mar e do sol.  Veja, as manhãs de Argel fazem de mim um letrista .)

Escrevo cada vez mais feio e em letras cada vez menores. Isso deve significar alguma coisa. Estou esperando pacientemente. Tenho certeza de que me sentirei diferente esta noite. Mas enquanto espero, tenho a maior e mais teimosa confiança. Gustave Doré dizia que a arte exige a paciência de um boi. Esta manhã, no campo do amor, tenho a paciência de um boi (um boi é um exagero...).

Você pelo menos escreveu? Por mais paciente que eu seja, o veneno me corrói por causa das horas e dos dias perdidos. Meu coração aperta quando penso nas noites que passamos em frente à lareira. Você certamente não conseguirá manter o fogo aceso na minha ausência. Mas pelo menos tente, preserve-o o máximo que puder. O papel Vesta-Virgo combina bem com você. Irei em uma semana e sequestrarei você. Depois de uma semana... não sou mais tão paciente. Escreva longamente, envie-me um pouco de você para esta cidade que o espera, recorra sempre a mim, ame-me como me amou à meia-noite do dia 24, e se você está muito deprimido neste momento, perdoe-me por estar tão entusiasmado com isso manhã . Mas a luz do sol e você...

Estou beijando você o mais forte que posso, meu amor.

-A

Na carta abaixo, Albert Camus descreve sua viagem a Londres para assistir a uma peça de teatro de vanguarda, na qual ele aponta várias peculiaridades e absurdos no cenário e nas atuações dos atores. Ele relata sua experiência desagradável no restaurante grego, onde a comida era ruim, e sua dificuldade para dormir após a experiência traumática no teatro. Camus expressa seu desejo de estar perto de sua amada Maria Casarès e compartilha sentimentos de angústia e saudades enquanto está longe dela. Ele termina a carta com um tom de carinho e ansiedade para retornar à sua amada. Ao longo da carta, Camus mistura humor, ironia e sentimentos profundos, refletindo sobre a vida e os desafios que enfrenta.



59 — ALBERT CAMUS A MARIA CASARÈS

Segunda-feira, 10 horas [7 de março de 1949]


Meu querido amor,


Desde a noite de sábado estou aqui às voltas com ideias ruins e imagens ainda piores. Ontem de manhã pensei em te telefonar de Le Bourget.

Mas eram dez horas e achei que poderia acordá-la. Ontem à noite, pensei em te escrever ao voltar para casa. Mas já era tarde, eu estava cansado e fiquei com receio de abrir espaço demais para lamentações. Desejo que você esteja perto de mim, de coração, neste momento, no fim das contas é a única coisa que vale a pena dizer.


E o melhor é fazer um relato da minha pequena viagem. Uma carta que vai ficar sem resposta e que felizmente pode se eximir de ser pessoal. Pois bem, aí vai! Encontrei Londres debaixo de neve e absolutamente deserta, era domingo. Eu estava sendo esperado por Dadelsen, um velho amigo, e pelo diretor acompanhado de dois intérpretes, uma Cesônia passável e um Calígula que por sinal constatei se parecer com um sorveteiro (você sabe, desses das carrocinhas). Em seguida, restaurante grego, onde nos atiramos na cozinha grega, que é ruim, preparada à maneira inglesa, o que é pior ainda. Vou para o hotel, razoável, para repousar meu estômago torturado. Me lembrava com saudade do Granada, que tem um chef virtuose, em comparação com os envenenadores de Londres. Depois, ensaio. O teatro, mais parece que estamos em La Villette. Mas é de vanguarda, o que salva tudo.


E aí tive algumas surpresas. Cipião tinha uma deformidade na coluna vertebral que lhe dava um ar de retardado. O velho senador tinha uma das mãos paralisada. Quereia usava uma toga cereja. Cesônia um vestido Folies Bergère com uma transparência que lhe mostrava as pernas até o delta das delícias (dizem as Mil e uma noites). Havia no palco uma estátua em pé de Péricles, chegando a dois ou três metros, e um espelho oval, encomendado em Barbès, no estilo metrô. E muita cortina. A Roma dos Césares mobiliada e vestida ao estilo Porte de Saint Ouen. Começa a função e eu começo a entender que as coisas se encaixavam. Calígula, se não vendesse sorvetes na vida comum, devia ser vendedor de espetinhos no boulevard des Chasseurs em Orã, representante de vassouras no boulevard Voltaire ou guia especial no Barrio Chino. O imperador byroniano bate no meu ombro, tem uma cabeleira encaracolada e espessa, a pele visivelmente suada e um ventre avantajado. Ou seja, Nero depois de uma refeição à antiga. Muito ardor, mas sem estilo. Ele representa instintivamente, como se diz, o que significa que não entende uma palavra do texto. Ainda por cima, como é grego, um sotaque segundo Dadelsen surpreendente.


A partir daí, eu já me achava conformado com tudo. Que ingenuidade! Não estava contando com os balés. Pois também há balés. Quando Calígula leva a mulher de Múcio, compelido pela natureza, três dançarinos, meio abissínios, meio francisca-nos, fazem no palco a mímica do amor, escolhem trinta e duas posições, se agarram pelas coxas e, de costas, esfregam a bunda uns nos outros. No segundo ato, Calígula vestido de Vênus dança um balé com os mesmos soldados (imagine o vendedor de bolinhos dançando com seios falsos) e é agarrado pelas nádegas pela respeitável companhia. Como essa acabou comigo, fui tomar um uísque. Mas já tinha passado da hora e só havia café, que tomei para esquecer e que me impediu de dormir boa parte da noite. Para acabarem comigo de vez, me arrastaram de novo para o restaurante grego, o que me impediu de dormir o resto da noite. Dormi uma hora, sonhando com balés monstruosos nos quais eu aparecia com o rei Jorge VI. O mais forte é que na terça-feira à noite uma plateia de embaixadores e mulheres do mundo está convocada para assistir a essas audácias bem francesas e ter uma ideia do teatro de Paris. E eu estarei lá, sonhando apenas com uma coisa, desaparecer, até na hora do avião.



Estou sonhando com outra coisa, naturalmente, mas espero retornar para te dizer: meu relacionamento acabou. Toda vez que te deixo, sinto uma angústia e um tremor no fundo do coração. Onde você está? Onde você está, meu amor? Está me espe-rando, não é, como eu te espero, com a mesma forte e longa fidelidade, com temor e certeza. Desde domingo há um mar entre nós. Mas realmente é como se a tivesse trazido comigo, você não me deixou.

Até quarta-feira, minha querida. Até breve, porto, pasto, pradaria, pão, piroga... Te beijo, te aperto contra mim... Estou no Basil Street Hotel. Knightsbridge London. Mas, você não terá tempo de me escrever. Estou chegando.


(AC)


© Foto de Jean-Jacques Lévy/AP. O acidente que matou Albert Camus. França, 1960.



No dia 30 de dezembro de 1959, Camus escreve sua última carta à Maria Casarès, quando por fim, acaba falecendo à caminho de sua amada em um trágico acidente de carro em Villeblevin, juntamente com Michel Gallimard e Anne Galimard. Camus morre na hora, enquanto Michel Galimard morre no hospital, cinco dias depois.



Bem. Última carta. Só para te dizer que chego na terça-feira, pela estrada, voltando com os Gallimard na segunda (eles passam aqui na sexta-feira). Vou te telefonar ao chegar, mas talvez já possamos combinar de jantarmos juntos na terça-feira. Digamos que em princípio, levando em conta os imprevistos da estrada - e te confirmarei o jantar pelo telefone. Já estou mandando uma carga de votos afetuosos, e que a vida ressurja em você durante todo o ano, te dando o querido rosto que eu amo há tantos anos (mas o amo preocupado também, e de todas as maneiras). Dobro o seu impermeável no envelope e junto todos os sóis do coração.

Até logo, minha esplêndida. Estou tão contente com a ideia de te rever que um rio enquanto escrevo. Fechei meus arquivos e não trabalho mais (famílias demais e amigos demais!).

De modo que não tenho mais motivos para me privar do seu riso e das nossas noites, nem da minha pátria. Te beijo, te aperto contra mim até terça-feira, quando recomeçarei.


- A



A intensidade do amor entre Maria Casarés e Albert Camus transcendeu os desafios de suas vidas e resistiu ao tempo. Suas cartas revelam o profundo amor e a conexão única que compartilhavam, mostrando que o verdadeiro amor é capaz de superar qualquer obstáculo. A história de Maria e Albert é um testemunho da força do amor e da coragem de enfrentar as adversidades da vida juntos. Sua paixão e devoção um pelo outro são inspiradoras e continuam a tocar os corações daqueles que conhecem sua história. Um romance intenso e verdadeiro que permanece vivo na memória e no coração de todos que conhecem sua jornada de amor.

Resenha: A cor púrpura, de Alice Walker

Imagem: Arte digital

APRESENTAÇÃO

A cor púrpura, ambientado no Sul dos Estados Unidos, entre os anos 1900 e 1940, conta a história de Celie, mulher negra, pobre e semianalfabeta. Brutalizada desde a infância, a jovem foi estuprada pelo padrasto e forçada a se casar com Albert, um viúvo violento, pai de quatro filhos, que enxergava a esposa como uma serviçal e fazia dos sofrimentos físicos e morais sua rotina.

Durante trinta anos, Celie escreve cartas para Deus e para a irmã Nettie, missionária na África. Os textos têm uma linguagem peculiar, que assume cadência e ritmo próprios à medida que Celie cresce e passa a reunir experiências, amores e amigos. Entre eles está a inesquecível Shug Avery, cantora de jazz e amante de Albert.

Apesar da dramaticidade do enredo, A cor púrpura é uma história sobre mudanças, redenção e amor. A partir da vida de Celie, a aclamada escritora Alice Walker tece críticas ao poder dado aos homens em uma sociedade que ainda hoje luta por igualdade entre gêneros, raças e classes sociais. Eleito pela BBC um dos 100 romances que definem o mundo, A cor púrpura é um retrato da vivência da mulher negra na época da segregação racial, cujos reflexos ainda estão presentes na nossa sociedade.


RESENHA


A cor púrpura é um romance escrito pela renomada autora americana Alice Walker, editado no Brasil pela editora José Olympio, selo do Grupo editorial Record. A obra relata a vida de Celie, uma adolescente de 14 anos que vive um inferno pessoal: abusada pelo pai, forçada a se casar com um homem que a trata como propriedade e, posteriormente, separada de sua irmã Nettie, com quem tinha uma conexão profunda. Celie escreve cartas para Deus, revelando-nos a história. A cada poucas páginas, novas cartas sobre sua vida são o seu refúgio diante dos acontecimentos. Grávida antes de entender sobre sexo e bebês, Celie sabe que é por causa das violações de seu pai. Com o tempo, Celie é obrigada a ter dois filhos, com os quais não convive, pois eles lhe foram tirados, causando uma tristeza inconsolável em Celie, que passa a observar cada vez mais o desenrolar dos dias. Com o tempo, ela é vendida para se casar com um homem mais velho, Albert, que aos poucos, mostra-se um homem nojento e sem nenhum grau de piedade ou amor à ela.

Imagem: Detalhes da diagramação / Divulgação


A trama se desenrola em meio ao racismo e machismo enraizados no sul dos Estados Unidos, onde Celie luta para manter sua identidade e sua vida. O livro aborda questões como a opressão das mulheres, a falta de acesso à educação e a força da amizade e do amor, mesmo diante das adversidades. Acompanhamos sua jornada, desde a separação de sua irmã Nettie até o reencontro, que se torna missionária na África. Ela perde seus filhos logo após o nascimento e casa-se com um homem abusivo. É ao conhecer Shug Avery que Celie encontra o amor e é amada em retorno, pela primeira vez em sua vida.


A obra se inicia com uma carta escrita por Celie à Deus, nela ela menciona como era a sua relação conturbada com seu pai e a frequência dos abusos sexuais sofridos no decorrer dos dias, fazendo-a, fazer, o que, como ele disse 'o que sua mãe num quis': Ele nunca teve uma palavra boa pra falar pra mim. Só falava Você vai fazer o que sua mãe num quis. Primeiro ele botou a coisa dele na minha coxa e cumeçou a mexer. Depois ele agarrou meus peitinho. Depois ele impurrou a coisa dele pra dentro da minha xoxota. Quando aquilo dueu, eu gritei. Ele cumeçou a me sufocar, dizendo É melhor você calar a boca e acustumar (p.7). A mãe de Celie morreu pouco tempo depois de ficar muito tempo doente, desta forma, ela começou a ficar responsável por todos os afazeres da casa: 


Minha mamãe morreu. Ela morreu gritando e praguejando. Ela gritou comigo. Ela praguejou comigo. Eu tô de barriga. Eu num posso andar muito depressa. Na hora queu volto do poço, a agua tá morna. Na hora queu arrumo a bandeja, a cumida já tá fria. Na hora queu arrumo todas as criança pra escola, já tá na hora do jantar (pg.8)


Celie então teve dois filhos, um foi morto pelo pai, o outro doado: Ele levou meu outro nenê também, um minino dessa vez. Mas eu num acho que ele matou não. Acho que ele vendeu prum homem e a esposa dele, lá em Monticello. Eu fiquei com os peito cheio de leite iscorrendo encima de mim (p.9)


Alice Walker utiliza a escrita de forma única, retratando a realidade de Celie por meio de cartas escritas para Deus e Nettie, nunca enviadas. A linguagem simplória, repleta de erros gramaticais e regionalismos, aproxima o leitor da vivência da protagonista, tornando a narrativa ainda mais intensa e emocionante.


A narrativa começa a delinear seus contornos mais emocionantes, quando Abert (marido de Celie) traz para morar consigo, Shug Avery, uma paixão de anos, que, em primeira instância, maltrata Celie, porém, o tempo passa e ela percebe o quanto ela é especial, dando-lhe conselhos e encorajando-a, tornando-se muito mais que amigas confidentes, o que claro, desagrada Albert que se encontra cada vez mais propenso à agredir e desfazer de Celie, o que, em alguns momentos, é repreendido por Shug.


Shug Avery sentou um pouquinho na cama hoje. Eu lavei e pintiei o cabelo dela. Ela tem o cabelo mais pincha, curto, e enroscado queu já vi, e eu amo cada fio dele. O cabelo que ficou no meu pente, eu guardei. Quem sabe um dia eu faço uma rede. uma malha pra botar no meu próprio cabelo. (p.57)


A primeira vez queu vi inteiro o longo corpo negro da Shug Avery com os bico do peito que nem ameixa preta, parecendo a boca dela, eu pensei queu tinha virado homem (p.53)


A narrativa de A Cor Púrpura é impactante, transmitindo a realidade de Celie de maneira direta. Ela relata com detalhes o que passa, sem rodeios, diferente da maioria dos romances. A vida de Celie é como é, sem adorno. O sofrimento causado à Celie pelo destino é algo que não se mensura em palavras. Ela foi abusada pelo próprio pai tendo dois filhos dele, aos quais foram tirados dela e doados; posteriormente, ela e sua irmã foram vendidas separadamente. Celie foi vendida para se casar com um homem abusivo, Albert, que além de humilhá-la, deixava claro que nutria sentimentos apenas por Shug Avery. Ela foi privada de manter qualquer tipo de contato com sua irmã Néttie por anos a fio.

Imagem: Detalhes da diagramação / Divulgação



Walker habilmente aborda questões como violência doméstica, misoginia, preconceito racial e marginalização social, oferecendo uma visão autêntica e poderosa das experiências vividas pelas personagens principais, especialmente a protagonista Celie. Ao longo do livro, vemos como essas mulheres enfrentam adversidades e injustiças de cabeça erguida, encontrando forças umas nas outras e em suas próprias habilidades.


Além disso, a cor púrpura é uma ode à autoaceitação, ao amor próprio e à importância da solidariedade feminina. O livro nos mostra como a união e o apoio mútuo entre mulheres podem ser transformadores e empoderadores, e como a busca por identidade e autonomia é uma jornada contínua e significativa.


Em resumo, a cor púrpura é uma obra fundamental que merece ser lida e apreciada por sua narrativa envolvente, sua profundidade temática e sua capacidade de inspirar reflexões e diálogos sobre questões sociais e humanas essenciais. É um testemunho da resiliência e da beleza que podem ser encontradas mesmo nas situações mais difíceis, e um lembrete da importância de ouvir e valorizar as vozes das mulheres negras.


A AUTORA

Walker nasceu em 9 de fevereiro de 1944 na pequena comunidade rural de Eatonton, no estado da Geórgia, região sul dos Estados Unidos. Foi a mais jovem de oito irmãos, prole de um casal que ganhava seu sustento por meio da parceria rural (ou sharecropping), que, no contexto pós-guerra civil para os americanos negros, era na prática uma continuação da escravidão. Apesar das dificuldades, a mãe de Alice, que para ajudar a aumentar o salário miserável era também costureira, vislumbrava um futuro melhor para a filha. Por isso, impediu a caçula de seguir os trabalhos rurais dos mais velhos, inscrevendo-a em uma escola aos quatro anos de idade.

Resenha: A leste do Éden, de John Steinbeck

Foto: Arte digital

APRESENTAÇÃO

Em seu diário, o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura, John Steinbeck, chamou A leste do Éden de seu “primeiro livro”. De fato, ele tem a energia primordial e a simplicidade de um mito. Ambientado nos campos férteis do vale do Salinas, na Califórnia, este livro grandioso e por vezes brutal acompanha o destino entrelaçado de duas famílias ― os Trask e os Hamilton ―, cujas respectivas gerações revivem impotentes a queda de Adão e Eva e a rivalidade deletéria de Caim e Abel.

Vindo do leste, Adam Trask chega à Califórnia para trabalhar em plantações e cuidar da família nessa nova terra repleta de promessas. Entretanto, o nascimento dos gêmeos, Caleb e Aaron, leva sua esposa à beira da loucura, restando a Adam criar os dois filhos. Enquanto Aaron cresce emanando amor por todas as coisas ao seu redor, Caleb segue solitário, envolto por uma névoa misteriosa, acreditando que o pai se importa apenas com seu irmão. E a eterna tensão entre os gêmeos se agrava ainda mais quando se apaixonam pela mesma mulher. É uma tragédia anunciada.

Publicado originalmente em 1952, em A leste do Éden Steinbeck desenvolveu seus personagens mais fascinantes e explorou os temas mais recorrentes de sua obra: o mistério da identidade, a inefabilidade do amor e as consequências devastadoras da ausência de afeto. Obra-prima da maturidade do autor estadunidense, este é um romance poderoso e ambicioso, a um só tempo a saga de uma família e uma transposição moderna do Livro de Gênesis.



RESENHA



Foto: Arte digital


O livro a leste de Éden nos fala sobre a saga familiar de Steinbeck, situada na zona rural da Califórnia entre a Guerra Civil e a Primeira Guerra Mundial, é repleta de escrita impressionante e tragédias impactantes.  No início, o narrador destaca a América no final do século XIX e início do século XX como um país de fronteira, onde um recém-chegado poderia construir uma nova vida trabalhando duro e aspirando proporcionar uma vida melhor para seus filhos. Infelizmente, as terras disponíveis não eram mais de igual qualidade, com os ricos conseguindo as melhores terras e os pobres ficando com as mais difíceis de cultivar e permanecendo na pobreza.


O avô do narrador, Samuel Hamilton, chegou ao Vale Salinas na Califórnia sem riquezas, aceitando o solo seco e pouco fértil, já que todas as melhores terras estavam ocupadas. Mesmo com sua bondade, inteligência e habilidade de encontrar soluções inovadoras, Samuel e sua família viviam sob constante ameaça da pobreza. A esposa de Samuel, Liza, é provavelmente ainda mais trabalhadora, criando os seus nove filhos nestas circunstâncias precárias. Liza, porém, não compartilha da capacidade de alegria de Samuel; ela desconfia da diversão e acredita que dançar é um convite ao diabo. Estóica e sem reclamar, Liza supera seu sofrimento com a convicção religiosa de que no final será recompensada por isso. Muitos anos depois dos Hamiltons, Adam Trask chega a Salinas já rico e compra uma propriedade estabelecida com boas terras agrícolas. Adam teve uma vida de altos e baixos. Sua mãe morreu quando ele ainda era recém-nascido. Seu pai, Cyrus, bebia e jogava antes mesmo de perder a perna na Guerra Civil. E, no entanto, o menino parece inspirar Cyrus a mudar seus hábitos. Ele se casa novamente rapidamente, tanto para dar uma mãe a Adam quanto para ter uma companheira para si, e tem com ela um segundo filho, Charles. Cyrus cria seus filhos e trabalha em sua fazenda com uma eficiência que nunca havia demonstrado em sua vida antes. Ele lê obsessivamente sobre a Guerra Civil e torna-se conhecido por seu conhecimento e procurado por seus conselhos; uma nova carreira que se torna lucrativa, apesar de ele quase não ter vivido a guerra.



Foto: Arte digital



Adam é um pouco parecido com seu meio-irmão Charles, que quase o matou de ciúmes quando jovem. O ódio de Charles vem do tratamento desigual de seu pai, que favorece Adam. Cyrus defende sua paternidade diferencial, apontando as diferenças entre os irmãos, como forçar Adam a se alistar no exército contra sua vontade, mas não Charles.


Na jornada para a idade adulta, Adam experimenta altos e baixos, sorte e azar. Agora, com dinheiro e uma esposa, Cathy, ele está ansioso para recomeçar em Salinas. No entanto, seu sonho de felicidade e contentamento é cego para os desejos de Cathy, que busca uma vida completamente diferente.


Quando o romance atinge seu clímax, fiquei surpreso com o fato de Steinbeck ter conseguido fazer com que eu me envolvesse tanto em seus personagens que fiquei fortemente afetado por sua narrativa. Os eventos devastadores e comoventes não foram necessariamente surpreendentes, o leitor sabe que eles estão chegando, você espera que o autor não vá por aí, mas Steinbeck está seguindo uma cadeia de causalidade tão impossível de negar quanto implacável e deixa você com a sensação de que isso é uma escrita e narrativa incríveis. Antes de prosseguir, há um aspecto deste romance que me surpreendeu e contribuiu para o meu grande respeito por ele. Um dos personagens principais do romance é Lee, um americano, contratado por Adam Trask como cozinheiro e que se torna amigo de longa data de Adam. Em um capítulo, logo depois de conhecermos Lee, Samuel e Lee começam a conversar. Samuel está curioso para saber por que escolheu falar pidgin quando também fala inglês excelente e nasceu na América. Por que ele usa a fila? Por que ele não volta para a China? Por que ele se contenta em trabalhar como servo? As respostas de Lee a essas perguntas são tão honestas quanto profundas e foram uma surpresa agradável para mim, visto que este romance foi publicado em 1952.


Os leitores modernos criticam Vinhas da Ira de Steinbeck por seu foco nos Okies, negligenciando a diversidade daqueles que lutavam no oeste dos Estados Unidos daquele período, particularmente o grande número de sino-americanos. Não tenho certeza se Steinbeck recebeu muitas críticas sobre esse ponto na época ou se Lee e esta passagem são respostas a isso. Mesmo que o fossem, isso não deveria diminuir o aspecto humanizador desta passagem. Pode até mostrar um lado da interação entre culturas que vale a pena celebrar e suportar. Hoje, existe um impulso cultural considerável contra até mesmo fazer perguntas como esta, com acusações que vão desde ser desencadeante até ser racista, embora seja difícil ver como deixar uma pessoa curiosa na ignorância proporciona alguma solução. Aqui, as perguntas de Samuel são feitas por pura curiosidade. Lee não se ofende com eles e pode ver que Samuel está desafiando sinceramente seus próprios preconceitos e suposições ao perguntar a eles. As respostas de Lee não são contra-acusativas, mas visam informar e educar Samuel sem julgamento. É uma passagem de destaque em um romance de destaque.


A leste do Éden, uma saga familiar inspirada na história da própria família de Steinbeck, conta a longa história de sobrevivência de uma família, com mudanças na sorte ao longo do tempo e das gerações. O romance apresenta temas de caráter herdado, destino e legado do passado que influencia o futuro. As complexas relações entre pai e filho dominam a história, mostrando que nem sempre hereditariedade é destino. Além disso, o livro faz alusões bíblicas, como o relacionamento de Caim e Abel entre Charles e Adam Trask. A busca por uma terra prometida e personagens como Samuel Hamilton e a misteriosa Cathy também têm significados profundos no enredo.


A obra discute um tema controverso, baseado em uma passagem do Gênesis e na palavra hebraica “timshel”, que trata do livre arbítrio versus o destino predeterminado. A interpretação dessa passagem afeta profundamente os personagens do romance, influenciando suas escolhas e visão de mundo. 


É relevante ressaltar que o autor baseia os principais temas do homem e de Deus na história de Caim e Abel. De acordo com sua visão, qualquer pessoa com nome iniciado com a letra “C” representa Caim, enquanto aqueles com nome iniciado com “A” devem refletir Abel. No entanto, esta abordagem contradiz a visão bíblica, sugerindo que o homem é neutro em relação a Deus e Ele faz escolhas sem sabedoria perfeita, sem conhecer plenamente o coração dos homens. A noção de que o homem é um inimigo de seu Criador, rebelando-se contra Ele, é uma importante doutrina cristã de antropologia explorada no livro.


A obra apresenta pensamentos interessantes misturados com a ideia de que Deus é cruel e o homem é vítima de seu Criador diante do sofrimento. O conflito entre Caim e Abel, que fizeram ofertas semelhantes sendo Caim desfavorecido por Deus, reflete essa perspectiva. É fundamental para os cristãos compreenderem que essa visão é simplista e equivocada. Muitas vezes, tendemos a transferir a culpa para os outros ou para Deus em nossos pecados, ao invés de assumirmos a responsabilidade. Devemos reconhecer a santidade de Deus e a nossa condição pecaminosa, ao invés de nos colocarmos como vítimas inocentes.


É essencial amar a humanidade, mas também conscientiza-la da verdade sobre nossa natureza pecaminosa. Como está escrito no Salmo 14:3, “Todos se extraviaram e juntamente se corromperam; não há quem faça o bem, não há nem um sequer.” É necessário compreender a santidade de Deus e reconhecer nossa dependência Dele para superar o orgulho e a arrogância que nos impedem de reconhecer a nossa própria culpa e necessidade de redenção. Que possamos buscar a verdade e a humildade diante do Senhor.


Ao final, "A leste de Éden" é uma obra-prima da literatura que combina uma narrativa envolvente com personagens complexos e temas universais. Steinbeck constrói um mundo rico e detalhado que nos transporta para o Vale Salinas e nos faz refletir sobre questões profundas sobre a natureza humana e o destino. Com uma escrita impressionante e uma trama cheia de reviravoltas e tragédias impactantes, este livro nos faz repensar nossa própria jornada e as escolhas que fazemos ao longo da vida. É uma leitura imperdível para quem busca uma obra literária profunda e marcante.

O Legado de Harper Lee: Uma Análise de 'O Sol é para todos'

Foto: Arte digital 

APRESENTAÇÃO

Nesta emocionante história ambientada no Sul dos Estados Unidos da década de 1930, região envenenada pela violência do preconceito racial, vemos um mundo de grande beleza e ferozes desigualdades através dos olhos de uma menina de inteligência viva e questionadora, enquanto seu pai, um advogado local, arrisca tudo para defender um homem negro injustamente acusado de cometer um terrível crime.

Uma história sobre raça e classe, inocência e justiça, hipocrisia e heroísmo, tradição e transformação, O sol é para todos permanece tão importante hoje quanto foi em sua primeira edição, em 1960, durante os anos turbulentos da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos.

Considerado um dos romances norte-americanos mais importantes do século XX, O sol é para todos surpreende pela atualidade de seu enredo e estilo. A lamentável permanência do tema, o racismo, percorre a narrativa de Scout, criança sensível, filha do advogado Atticus Finch, responsável pela defesa de um homem negro acusado de estuprar uma mulher branca em Maycomb, pequeno município de Alabama, no sul dos Estados Unidos, no início dos anos 1930.Os sentimentos que cercam a família e a cidade de Scout - desde que Atticus se dispôs a cuidar do famigerado caso - são nossos velhos conhecidos: preconceito racial e social, conformismo diante das injustiças e a mais pura malícia destilada em relações banais e familiares. Apesar da crua humanidade desses personagens, Scout enxerga a realidade com o frescor dos olhos infantis, e conta sua história, deixando um improvável rastro de esperança.

Scout narra a rotina de um ambiente rural e pacato, as férias de verão com o irmão, Jem, e o melhor amigo deles, Dill, a curiosidade com os vizinhos, as travessuras inventadas, as aventuras na escola e a vida em família.

O conjunto de pequenos casos nos transporta a um lugar de aparente quietude. No entanto, esse suposto relaxamento se transforma e desespero quando vemos a reação da população de Maycomb diante de denúncia contra Tom Robinson.

O impacto da publicação e da contínua exposição de O sol é para todos o fez figurar em dezenas de listas e pesquisas, tendo sido escolhido pelo Library Journal como o melhor romance do século XX e eleito pelos leitores da Modern Library um dos 100 melhores romances em língua inglesa desde 1900. O livro apareceu pela primeira vez em uma lista feita por bibliotecários em 2006 como o livro que todos deveriam ler antes de morrer, seguido da Bíblia. Um clássico moderno que continua a emocionar jovens e adultos.


RESENHA



O romance "O sol é para todos", de Harper Lee, inicialmente pode parecer uma história sem muita atratividade. Contando a jornada de duas crianças em uma tranquila cidade do Alabama, o enredo não parece despertar grande interesse à primeira vista. No entanto, eu me vi na mesma situação ao ser obrigado a ler esse livro durante o meu primeiro ano do ensino médio.


Conforme avançava na leitura, fui progressivamente envolvido na história intemporal de Lee. Compartilhando das emoções de Jem e Scout, os jovens irmãos que exploram as complexidades da vida no Sul preconceituoso dos Estados Unidos do início do século XX, o leitor é imerso em uma comunidade afetada tanto pela Grande Depressão quanto pelas tensões raciais.


A transformação pessoal de Jem e Scout ao longo do romance é evidente. Da inocência infantil inicial ao confronto com a realidade do preconceito racial, eles tentam conciliar as normas sociais locais com a moralidade ensinada por seu pai. Enquanto testemunhamos essa evolução, somos também impactados pelas mensagens poderosas transmitidas por Lee.


Embora algumas partes do livro possam parecer simplistas, as reflexões profundas sobre questões sociais e morais superam quaisquer falhas. Recomendo a leitura de "O sol é para todos" para aqueles que buscam uma experiência literária enriquecedora e emocionante. Permita-se ser tocado pelas emocionantes narrativas e pelas poderosas mensagens presentes nesta obra-prima de Harper Lee.


Jean Louise é uma jovem corajosa e brilhante, que desafia as expectativas da sociedade da época. Enquanto se esperava que as mulheres se comportassem de acordo com padrões tradicionais, ela foi criada por um pai que não a limitou a essas normas. Ela é forte, inteligente e adorável, apesar de suas falhas de infância e do ambiente conservador em que cresceu.


Atticus Finch é retratado como um verdadeiro herói, um homem branco educado e culto que sempre faz o que é certo. Ele busca incentivar seus filhos a serem boas pessoas, mesmo que isso signifique agir de forma diferente do que o faria em outras situações. Os personagens secundários do romance também são notáveis, representando uma variedade de visões e origens. Essa diversidade contribui para a riqueza e complexidade da narrativa.


Além disso, a escrita de Lee é magistral, com uma linguagem fluida e envolvente que transporta o leitor para a atmosfera do Sul dos Estados Unidos da época. Sua capacidade de criar personagens autênticos e complexos, bem como de explorar temas relevantes e atemporais, faz de "O sol é para todos" um clássico da literatura que ressoa até os dias de hoje.


Portanto, mesmo que inicialmente possa parecer uma história simples sobre a infância e as descobertas dos protagonistas, este romance de Harper Lee vai muito além. A trama, os personagens e as mensagens profundas que transmite fazem com que seja uma leitura que vale a pena para todos que apreciam uma boa história bem contada. Eu, particularmente, me emocionei e me vi refletindo sobre muitas questões após terminar este livro. Recomendo fortemente a sua leitura.

[RESENHA #1015] A arte da guerra, de Sun Tzu

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APRESENTAÇÃO

O que faz de um tratado militar, escrito por volta de 500 a.C., manter-se atual a ponto de ser publicado praticamente no mundo todo até os dias de hoje? Você verá que, em A arte da guerra, as estratégias transmitidas pelo general chinês Sun Tzu carregam um profundo conhecimento da natureza humana. Elas transcendem os limites dos campos de batalha e alcançam o contexto das pequenas ou grandes lutas cotidianas, sejam em ambientes competitivos – como os do mundo corporativo – sejam nos desafios internos, em que temos de encarar nossas próprias dificuldades. Se você não conhece a si mesmo nem o inimigo, sucumbirá a todas as batalhas. Sun Tzu


RESENHA


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A obra "A Arte da Guerra", escrita por Sun Tzu no século V a.C., originalmente concebida como um manual estratégico militar, encontrou diversas aplicações não relacionadas ao campo de batalha. Atualmente, é utilizada em áreas como Negócios, Esportes e até mesmo Relacionamentos. Composto por 13 capítulos distintos, cada um abordando um aspecto específico do planejamento e gestão de conflitos, o livro analisa detalhadamente fatores e variáveis individuais que podem surgir, oferecendo orientações para se preparar para cada situação. Trata-se, portanto, de uma obra abrangente que considera todas as complexidades e cenários possíveis.  O autor explora aspectos como a importância da preparação, do planejamento e da flexibilidade em situações de conflito. Sun Tzu destaca a necessidade de conhecer o inimigo e a si mesmo para alcançar a vitória, além de enfatizar a importância da astúcia e da estratégia sobre a força bruta.

O livro traz uma detalhada explicação e análise dos militares chineses do século V aC, abordando desde armas, condições ambientais e estratégias até classificação e disciplina. Sun destacou a importância dos agentes de inteligência e espionagem no esforço de guerra, sendo considerado um dos melhores estrategistas e analistas militares da história, cujos ensinamentos e estratégias influenciaram o treinamento militar avançado em todo o mundo.

A obra foi traduzida para o francês e publicada em 1772 pelo jesuíta francês Jean Joseph Marie Amiot, sendo republicada em 1782. Uma tradução parcial para o inglês foi tentada pelo oficial britânico Everard Ferguson Calthrop em 1905 sob o título "A arte da guerra". A primeira tradução comentada para o inglês foi concluída e publicada por Lionel Giles em 1910. Líderes militares e políticos como Mao Zedong, Takeda Shingen, Võ Nguyên Giáp, Douglas MacArthur e Norman Schwarzkopf Jr. são citados como tendo se inspirado no livro.

A obra analisa os cinco princípios essenciais (o Caminho, as estações, o terreno, a liderança e a gestão) e os sete fatores que influenciam os resultados das batalhas militares. Ao refletir, avaliar e comparar esses aspectos, um líder pode prever suas chances de sucesso. Ignorar esses cálculos essenciais certamente resultará em fracasso devido a ações inadequadas. O texto enfatiza a gravidade da guerra para o Estado e adverte que não deve ser declarada sem uma ponderação cuidadosa. Neste texto, é abordado o entendimento da economia da guerra e a importância de conquistar compromissos decisivos de forma rápida para o sucesso nas campanhas militares. É ressaltado que para alcançar o sucesso, é necessário limitar os custos da competição e do conflito.

Definindo a fonte de força é definida como uma unidade, não em tamanho. Os cinco fatores necessários para o sucesso em qualquer guerra são discutidos em ordem de importância: Ataque, Estratégia, Alianças, Exército e Cidades. O livro também defende as posições existentes é crucial até que um comandante seja capaz de avançar com segurança a partir dessas posições. Reconhecer oportunidades estratégicas é fundamental, assim como evitar criar oportunidades para o inimigo.

Esses princípios são essenciais para alcançar a vitória em qualquer confronto, garantindo a maximização da força e minimizando as vulnerabilidades. Explique como as oportunidades de um exército surgem a partir das vulnerabilidades do inimigo e como lidar com as mudanças no campo de batalha. Destaque os perigos do confronto direto e discuta estratégias para vencê-los. Enfatize a importância da flexibilidade nas respostas do exército e a capacidade de se adaptar às mudanças nas circunstâncias. Descreva as diferentes situações enfrentadas por um exército ao avançar em território inimigo e como avaliar as intenções do adversário. Analise as áreas de resistência e os tipos de posições terrestres, destacando suas vantagens e desvantagens.

"A arte da guerra" é uma leitura essencial para aqueles que querem entender as dinâmicas do poder e da competição, ensinando lições valiosas sobre liderança, tomada de decisão e resolução de conflitos. Ao longo dos séculos, o livro continua a ser uma referência para estrategistas e líderes em todo o mundo, demonstrando a atemporalidade e a relevância de seus ensinamentos.

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