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Resenha: Escreva muito e sem medo, de Albert Camus e Maria Casarès

Foto: Arte digital


APRESENTAÇÃO


Em 19 de março de 1944, Albert Camus e Maria Casarès se conhecem na casa de Michel Leiris. A ex-aluna do Conservatório de Arte Dramática de Paris, nascida em Corunha e filha de um político espanhol forçado ao exílio, tem apenas 21 anos. Ela havia começado a carreira em 1942, no Théâtre des Mathurins, mesmo ano em que Camus publicara O estrangeiro pela Gallimard. Na época, o escritor morava sozinho em Paris. Por causa da guerra, acabou afastado da esposa, Francine, que havia ficado em Orã, na Argélia.

Sensível ao talento da atriz, confiou-lhe o papel de Martha na estreia de O mal-entendido, peça de sua autoria, em junho de 1944. Em 6 de junho do mesmo ano, na noite do Dia D, Albert Camus e Maria Casarès tornaram-se amantes. Esse era só o preâmbulo de uma grande história de amor que só deslancharia de fato em 1948.

Tendo como pano de fundo a vida e as atividades criativas dos amantes (livros e congressos no caso do escritor; a Comédie-Française, turnês e o Teatro Nacional Popular no caso da atriz), a troca de correspondências revela a intensidade do relacionamento, vivida não só na ausência e na privação como também na compreensão da necessidade dessa separação, no ardor do desejo, na felicidade dos dias compartilhados, nos trabalhos em comum e na busca pelo verdadeiro amor, com sua perfeita formulação e plena realização.

Sabe-se que a obra de Albert Camus é atravessada pela ideia e pela experiência do amor. A publicação desta enorme troca de correspondências revela uma pedra angular de uma preocupação constante em seu trabalho. “Quando se ama alguém, ama-se para sempre”, confidenciou Maria Casarès muito depois da morte de Albert Camus; “quando não se esteve mais sozinho uma vez, nunca mais se estará”.



Foto: Arte digital



RESENHA



Maria Casarés e Albert Camus se encontraram em Paris em um momento turbulento da história, durante a Segunda Guerra Mundial. Ela, uma jovem de vinte e um anos, e ele, um homem de trinta, estavam vivendo em meio às incertezas e perigos da ocupação alemã. Ambos tinham em comum a experiência do exílio, Maria por conta do regime de Franco e Camus por ser originário da Argélia. Em meio a esse contexto conturbado, os dois se apaixonaram e viveram um intenso romance. A resistência fazia parte da vida de Camus, enquanto Maria mostrava coragem e determinação em seus atos. Mesmo com a volta de Francine Faure, a esposa de Camus, em outubro de 1944, Maria e Albert não conseguiram se manter afastados e voltaram a se unir.



Foto: konyvesmagazin / reprodução



Albert Camus e Maria Casarés se conheceram na casa de Michel e Zette na representação-leitura de Le Désir attrapépar la queue, de Pablo Picasso, em 19 de março de 1944. O escritor oferece à jovem atriz, o papel de Martha em O mal entendido. Iniciado os ensaios, ele se encanta por ela. Na noite de 6 de junho de 1944, depois de uma reunião na casa do diretor Charles Dullin, no exato dia do desembarque das tropas aliadas na Normandia, eles se tornaram amantes. A atriz então se separa de Jean Bleynie, de uma família de viticultores de Bordeaux, amante que sucedera no início de 1947 ao tempestuoso ator belga Jean Servais (191001976). Nesta mesma época, Camus assina como Michel as cartas enviadas à Maria.


Maria foi fruto do relacionamento de Gloria Pérez Corrales com o advogado galego Santiago Casarès Queiroga, em 25 de outubro de 1920, dando luz à Maria no dia 21 de novembro de 1922. Sua mãe, Glória Casarès, morre então em 10 de janeiro de 1946, no Hospital de Curie de Paris, aos cinquenta anos. As cartas de Maria nos colocam de frente a uma atriz de talento imensurável, descrevendo através de suas palavras sua força, coragem e suas fraquezas. Ela atuava no Comedie-Française e do Teatro Nacional Popular (TNP), atuando ao lado de Michel Bouquet, Gérard Philipe, Marcel Herrand, Serge Reggiani, Jean Villar e ama todos eles.


Já Camus escreve de forma mais concisa e direta, suas cartas revelam uma saudade latente sempre presente de Maria, ele descreve rua escrita, projetos, reuniões, sua paixão pela escrita, pelo teatro e a constante atenção dada aos atores e ao compromissos. Ele militava na resistência. De ascendência espanhola pela mãe, tuberculoso como Santiago Casarès Queiroga e também exilado, já que originário da Argélia. (ps. 53 - versão digital, kindle)


Durante doze anos, eles viveram um amor intenso e cheio de emoções. Maria, com seu talento de grande atriz, revelava sua intensidade em cartas e em suas atuações no rádio e no cinema. Os imprevistos da vida não conseguiram separá-los, e mesmo com a morte de Camus em janeiro de 1960, o amor que viveram permaneceu vivo na memória de todos que os conheceram. A história de Maria Casarés e Albert Camus é um testemunho de amor intenso e verdadeiro, que resistiu aos desafios e às adversidades da vida. Seu encontro em Paris, em meio à guerra, marcou o início de uma história de amor que transcendeu o tempo e as dificuldades, mostrando que o amor verdadeiro é capaz de superar qualquer obstáculo.


As correspondências de escreva muito e sem medo, datam dos anos 1944 - 1946 - 1948 - 1949 - 1950 - 1951 - 1952 - 1953 - 1954 - 1955 - 1956 - 1957 - 1958 e 1959, em um total de 1.288 páginas. 


As cartas de Camus são mais frequentes e mais concisas com um desenvolvimento mais trabalhado, reflexos de seu hábil trabalho como escritor, porém, traduziam em igual intensidade o amor e os sentimentos que correspondia, bem como suas dúvidas de escrita, o ofício e o trabalho, apesar da tuberculose.



Confira algumas das correspondências apaixonadas entre Albert Camus e Maria Casarès:



Em junho de 1944, Camus escreve à Maria Casarès:


Uma hora [da manhã] [junho de 1944] 


Ma pequena Maria, Acabei de voltar para casa, não quero dormir de jeito nenhum, e tenho uma vontade tão grande de ter você perto de mim que tenho que sentar na minha mesa para conversar com você da única maneira que posso. Não ousei dizer ao Marcel [Herrand] que não queria ir beber o champanhe dele. E você estava com tanta gente! Mas depois de meia hora, eu estava farto, só precisava de você. Eu te amei muito, Maria, essa noite toda, vendo você, ouvindo sua voz que se tornou para mim insubstituível enquanto ia até Marcel, encontrei um trecho de texto para a peça. Não consigo mais ler sem te ouvir, é a minha maneira de ser feliz com você. Tento imaginar o que você faz e me pergunto por que você não está aqui. Digo a mim mesmo que o que estaria na regra, na única regra que conheço, que é a da paixão e da vida, é que você volte para casa amanhã e terminemos juntos uma noite que teríamos começado juntos. Mas também sei que isso é vão e existe todo o resto. Mas pelo menos não se esqueça de mim quando me deixar. Não se esqueça também do que lhe contei extensivamente em minha casa, um dia, antes que tudo corresse. Naquele dia eu te disse do fundo do coração e gostaria, gostaria muito que fôssemos um para o outro como eu disse que deveríamos ser. Não me deixe, não posso imaginar nada pior do que perder você. O que eu faria agora sem aquele rosto onde tudo me sacode, essa voz e também esse corpo pressionado contra mim? Além disso, não é isso que eu queria te contar hoje. Mas apenas a sua presença aqui, a necessidade que tenho de você, o meu pensamento desta noite. Boa noite meu querido. Espero que amanhã chegue rápido e todos os outros dias em que você será mais meu do que essa peça maldita. Eu te beijo com todas as minhas forças. 


(AC)

María Casares y Albert Camus en una imagen de 1948.
(Album / Rue des Archives / Bridgeman Images / Rene Saint Paul) Otras Agencias



43. Maria Casares para Albert Camus  Natal [1948]


Você se foi, meu amor, e eu fiquei aqui cheio de você, coberto, todo embrulhado em você. E como tive medo desse encontro de Natal! E agora, amanhã, você terá ido embora, muito, muito longe, e onde quer que eu vá, ainda posso sentir o calor do seu corpo.  Não entendo por que sua presença constante em meu coração não é suficiente para me fazer feliz, e às vezes fico com raiva de mim mesma por querer mais. Mas o que você esperava?! Se estou sentado em casa em frente à lareira, como estou agora, por que não sentiria a necessidade de você estar comigo e vigiar o fogo juntos? 


Se eu saio do meu apartamento e vejo algo na rua ou em qualquer lugar que me ofende, me ofende ou me faz rir, por que não deveria buscar o seu olhar? Quando vou para a cama, como posso não sentir que você não está comigo? Se alguém fala comigo, como posso não pensar na sua boca? Se alguém olhar para mim, para os seus olhos? E o seu nariz, as suas mãos, a sua testa, os seus braços, as suas pernas, o seu corpo, as rugas do seu rosto, o seu sorriso?

Oh, o temperamento está pegando! Mas porque não? Encontrei o Maravilhoso, mas só pode ser meu com autorização e em horários pré-combinados! Como posso não me rebelar?

Quero você em todos os lugares, em tudo e em todos, e sempre. Sim, sempre, e só não me diga coisas como "se..." ou "talvez..." ou "desde que...". Eu quero você, eu sei, você se tornou minha necessidade básica e usarei meu coração, minha alma, toda minha vontade e até minha crueldade se for preciso para te tornar minha.

Se você discorda, se escolhe manter a calma, se tem medo, diga isso e fique de lado.

Eu irei até o fim. Posso perder o seu amor. Sinto muito também! Eu assumo o risco. Talvez a vida que escolho para mim seja cheia de ansiedade e tristeza. Sinto muito também!

A escolha é sua. Ainda temos tempo, diga-nos o que você escolhe. Isso é tudo que peço. O resto depende de mim.

Estou falando fora de contexto?... Não, sinto que o cachorro está enterrado aqui. Até agora não fiz nada, nem pensei em fazer nada para mudar a nossa vida. Mas acredite, mesmo a minha única determinação pode mudar muitas coisas.

Casado?

Tenho certeza do meu amor por você e me sinto capaz de superar qualquer coisa. Chegou a hora de escolher: devo escolher a vitória ou devo continuar a me render ao lindo sentimento de piedade e generosidade, como tenho feito até agora? O poder da fraqueza é enorme, mas não vejo por que não deveria ser comparável ao poder do meu amor talvez atraente, mas proibido. Alguém tem que estar infeliz, e nesses casos escolhemos sempre a solução que nos deixa infelizes, porque assim nos sentimos menos culpados. É por isso que nunca te pedi nada.

Mas não nasci para uma vida de sacrifício; o sacrifício é uma grande honra e até felicidade para alguns, mas não para mim (a fada que não foi convidada para a festa). Está drenando minha alma e me matando. Devo agir e ganhar ou perder.


Foto: seminci / Maria Casarès, a mulher que viveu mil vidas


María Casarès, de uma carta à Albert Camus, junho de 1950:

“Nos conhecemos, nos reconhecemos, nos abandonamos um ao outro. Vivemos um amor pelo cristal puro e ardente. Você percebe a felicidade que temos e o que nos foi dado?”




Em sexta-feira à noite, 11 horas [7 de junho de 1944]

Esta noite tenho vontade de me voltar para você porque estou de coração pesado e tudo me parece difícil de viver.



Um dos trechos mais fortes e impactantes [para mim] são de uma carta escrita em uma sexta-feira, 11 horas no dia 7 de junho de 1944 de Camus à Casarès:



[...] Até o momento você amou em mim o que eu tinha de melhor. Talvez ainda não seja amar. E talvez só me ame realmente quando me amar com minhas fraquezas e meus defeitos. Mas quando e dentro de quanto tempo? Que coisa magnífica e terrível ter de se amar também no perigo, na incerteza, num mundo que está desmoronando e numa história em que a vida de um homem pesa tão pouco. Não terei mais paz enquanto estiver privado do seu rosto. Se você não vier, terei paciência, mas paciência no sofrimento e na secura do coração.



44. Albert Camus para Maria Casarès
Domingo, 22h [1948 26 de dezembro]

Dia ruim. Cheguei esta manhã e não consegui dormir à noite. O avião flutuou lentamente entre as estrelas. O mar acima das Ilhas Baleares estava cheio de estrelas. Pensando em você. E depois um dia inteiro numa clínica, com uma senhora idosa que nem sabe o quão perto estava da morte. Felizmente, a minha mãe estava lá e, graças à sua bondade e total indiferença, todos os pensamentos perturbadores são evitados. . (Aprendi com o exemplo dele que os dois se dão bem.) À noite tive vontade de passear pela cidade, que estava completamente vazia, como sempre fica depois das 9. E depois há a chuva forte, mas sempre de curta duração. Na cidade deserta me senti no fim do mundo. Mas esta é a minha cidade. Voltando ao meu quarto (moro em um hotel) senti que iria te encontrar ali e que algo colossal finalmente começaria. Mas a sala estava vazia, então resolvi escrever para você.

Você está comigo desde ontem, nunca te amei com tanta paixão como lá em cima, voando no céu noturno, de madrugada no aeroporto, nesta cidade onde agora sou um estranho, na chuva do porto. ... Se eu perder você, vou me perder - esta é a minha resposta à sua pergunta, que estou gritando com você agora.

Mas tenho que dormir, mal consigo ficar de pé. Eu só queria contar a história de um dia que foi repleto de você em todos os sentidos. Vou ficar aqui até minha próxima cirurgia em duas semanas. Escreva, não me deixe sozinho. Fui dominado por pensamentos deprimentes, algum tipo de sentimento ruim. Oh querida eu preciso de você. Mas também há algo de belo na maneira como me arrasto, como foi esta noite, quando o cansaço e a ternura me derrubaram. Eu te beijo, meu amor, demoradamente, mas com cuidado para recuperar o fôlego.

- A

45. Albert Camus para Maria Casarès
Segunda-feira, 10h [1948 27 de dezembro]

Acho melhor não ler o que escrevi ontem, entorpecido pelo sono, tão sombrio quanto as ruas de Argel debaixo de chuva. A luz do sol inundou meu quarto esta manhã. Dormi dez horas, mas não sonhei, foi como um sono depois de fazer amor. Um lindo dia nos cumprimentou. Já esqueci que Argel é a cidade das manhãs.

Hoje estou almoçando na casa da minha mãe, no subúrbio, onde passei toda a minha juventude.

Como foi seu almoço ontem? Eu daria metade do meu braço (estou exagerando, claro) para passear com você na praia esta manhã e fazer você se apaixonar pelo que eu amo, sua eterna cânfora garota feia. Olha, o sol está brilhando no papel e estou escrevendo essas linhas no meio de uma poça dourada. (Ontem li num livro a seguinte definição do sol: o cruel olho dourado da eternidade. Mas Rimbaud tem mais razão: a eternidade é o abraço do mar e do sol.  Veja, as manhãs de Argel fazem de mim um letrista .)

Escrevo cada vez mais feio e em letras cada vez menores. Isso deve significar alguma coisa. Estou esperando pacientemente. Tenho certeza de que me sentirei diferente esta noite. Mas enquanto espero, tenho a maior e mais teimosa confiança. Gustave Doré dizia que a arte exige a paciência de um boi. Esta manhã, no campo do amor, tenho a paciência de um boi (um boi é um exagero...).

Você pelo menos escreveu? Por mais paciente que eu seja, o veneno me corrói por causa das horas e dos dias perdidos. Meu coração aperta quando penso nas noites que passamos em frente à lareira. Você certamente não conseguirá manter o fogo aceso na minha ausência. Mas pelo menos tente, preserve-o o máximo que puder. O papel Vesta-Virgo combina bem com você. Irei em uma semana e sequestrarei você. Depois de uma semana... não sou mais tão paciente. Escreva longamente, envie-me um pouco de você para esta cidade que o espera, recorra sempre a mim, ame-me como me amou à meia-noite do dia 24, e se você está muito deprimido neste momento, perdoe-me por estar tão entusiasmado com isso manhã . Mas a luz do sol e você...

Estou beijando você o mais forte que posso, meu amor.

-A

Na carta abaixo, Albert Camus descreve sua viagem a Londres para assistir a uma peça de teatro de vanguarda, na qual ele aponta várias peculiaridades e absurdos no cenário e nas atuações dos atores. Ele relata sua experiência desagradável no restaurante grego, onde a comida era ruim, e sua dificuldade para dormir após a experiência traumática no teatro. Camus expressa seu desejo de estar perto de sua amada Maria Casarès e compartilha sentimentos de angústia e saudades enquanto está longe dela. Ele termina a carta com um tom de carinho e ansiedade para retornar à sua amada. Ao longo da carta, Camus mistura humor, ironia e sentimentos profundos, refletindo sobre a vida e os desafios que enfrenta.



59 — ALBERT CAMUS A MARIA CASARÈS

Segunda-feira, 10 horas [7 de março de 1949]


Meu querido amor,


Desde a noite de sábado estou aqui às voltas com ideias ruins e imagens ainda piores. Ontem de manhã pensei em te telefonar de Le Bourget.

Mas eram dez horas e achei que poderia acordá-la. Ontem à noite, pensei em te escrever ao voltar para casa. Mas já era tarde, eu estava cansado e fiquei com receio de abrir espaço demais para lamentações. Desejo que você esteja perto de mim, de coração, neste momento, no fim das contas é a única coisa que vale a pena dizer.


E o melhor é fazer um relato da minha pequena viagem. Uma carta que vai ficar sem resposta e que felizmente pode se eximir de ser pessoal. Pois bem, aí vai! Encontrei Londres debaixo de neve e absolutamente deserta, era domingo. Eu estava sendo esperado por Dadelsen, um velho amigo, e pelo diretor acompanhado de dois intérpretes, uma Cesônia passável e um Calígula que por sinal constatei se parecer com um sorveteiro (você sabe, desses das carrocinhas). Em seguida, restaurante grego, onde nos atiramos na cozinha grega, que é ruim, preparada à maneira inglesa, o que é pior ainda. Vou para o hotel, razoável, para repousar meu estômago torturado. Me lembrava com saudade do Granada, que tem um chef virtuose, em comparação com os envenenadores de Londres. Depois, ensaio. O teatro, mais parece que estamos em La Villette. Mas é de vanguarda, o que salva tudo.


E aí tive algumas surpresas. Cipião tinha uma deformidade na coluna vertebral que lhe dava um ar de retardado. O velho senador tinha uma das mãos paralisada. Quereia usava uma toga cereja. Cesônia um vestido Folies Bergère com uma transparência que lhe mostrava as pernas até o delta das delícias (dizem as Mil e uma noites). Havia no palco uma estátua em pé de Péricles, chegando a dois ou três metros, e um espelho oval, encomendado em Barbès, no estilo metrô. E muita cortina. A Roma dos Césares mobiliada e vestida ao estilo Porte de Saint Ouen. Começa a função e eu começo a entender que as coisas se encaixavam. Calígula, se não vendesse sorvetes na vida comum, devia ser vendedor de espetinhos no boulevard des Chasseurs em Orã, representante de vassouras no boulevard Voltaire ou guia especial no Barrio Chino. O imperador byroniano bate no meu ombro, tem uma cabeleira encaracolada e espessa, a pele visivelmente suada e um ventre avantajado. Ou seja, Nero depois de uma refeição à antiga. Muito ardor, mas sem estilo. Ele representa instintivamente, como se diz, o que significa que não entende uma palavra do texto. Ainda por cima, como é grego, um sotaque segundo Dadelsen surpreendente.


A partir daí, eu já me achava conformado com tudo. Que ingenuidade! Não estava contando com os balés. Pois também há balés. Quando Calígula leva a mulher de Múcio, compelido pela natureza, três dançarinos, meio abissínios, meio francisca-nos, fazem no palco a mímica do amor, escolhem trinta e duas posições, se agarram pelas coxas e, de costas, esfregam a bunda uns nos outros. No segundo ato, Calígula vestido de Vênus dança um balé com os mesmos soldados (imagine o vendedor de bolinhos dançando com seios falsos) e é agarrado pelas nádegas pela respeitável companhia. Como essa acabou comigo, fui tomar um uísque. Mas já tinha passado da hora e só havia café, que tomei para esquecer e que me impediu de dormir boa parte da noite. Para acabarem comigo de vez, me arrastaram de novo para o restaurante grego, o que me impediu de dormir o resto da noite. Dormi uma hora, sonhando com balés monstruosos nos quais eu aparecia com o rei Jorge VI. O mais forte é que na terça-feira à noite uma plateia de embaixadores e mulheres do mundo está convocada para assistir a essas audácias bem francesas e ter uma ideia do teatro de Paris. E eu estarei lá, sonhando apenas com uma coisa, desaparecer, até na hora do avião.



Estou sonhando com outra coisa, naturalmente, mas espero retornar para te dizer: meu relacionamento acabou. Toda vez que te deixo, sinto uma angústia e um tremor no fundo do coração. Onde você está? Onde você está, meu amor? Está me espe-rando, não é, como eu te espero, com a mesma forte e longa fidelidade, com temor e certeza. Desde domingo há um mar entre nós. Mas realmente é como se a tivesse trazido comigo, você não me deixou.

Até quarta-feira, minha querida. Até breve, porto, pasto, pradaria, pão, piroga... Te beijo, te aperto contra mim... Estou no Basil Street Hotel. Knightsbridge London. Mas, você não terá tempo de me escrever. Estou chegando.


(AC)


© Foto de Jean-Jacques Lévy/AP. O acidente que matou Albert Camus. França, 1960.



No dia 30 de dezembro de 1959, Camus escreve sua última carta à Maria Casarès, quando por fim, acaba falecendo à caminho de sua amada em um trágico acidente de carro em Villeblevin, juntamente com Michel Gallimard e Anne Galimard. Camus morre na hora, enquanto Michel Galimard morre no hospital, cinco dias depois.



Bem. Última carta. Só para te dizer que chego na terça-feira, pela estrada, voltando com os Gallimard na segunda (eles passam aqui na sexta-feira). Vou te telefonar ao chegar, mas talvez já possamos combinar de jantarmos juntos na terça-feira. Digamos que em princípio, levando em conta os imprevistos da estrada - e te confirmarei o jantar pelo telefone. Já estou mandando uma carga de votos afetuosos, e que a vida ressurja em você durante todo o ano, te dando o querido rosto que eu amo há tantos anos (mas o amo preocupado também, e de todas as maneiras). Dobro o seu impermeável no envelope e junto todos os sóis do coração.

Até logo, minha esplêndida. Estou tão contente com a ideia de te rever que um rio enquanto escrevo. Fechei meus arquivos e não trabalho mais (famílias demais e amigos demais!).

De modo que não tenho mais motivos para me privar do seu riso e das nossas noites, nem da minha pátria. Te beijo, te aperto contra mim até terça-feira, quando recomeçarei.


- A



A intensidade do amor entre Maria Casarés e Albert Camus transcendeu os desafios de suas vidas e resistiu ao tempo. Suas cartas revelam o profundo amor e a conexão única que compartilhavam, mostrando que o verdadeiro amor é capaz de superar qualquer obstáculo. A história de Maria e Albert é um testemunho da força do amor e da coragem de enfrentar as adversidades da vida juntos. Sua paixão e devoção um pelo outro são inspiradoras e continuam a tocar os corações daqueles que conhecem sua história. Um romance intenso e verdadeiro que permanece vivo na memória e no coração de todos que conhecem sua jornada de amor.

Diferenças geracionais: Sobre Minha Filha - Um Romance Comovente de Kim Hye-jin

Foto:colagem digital

APRESENTAÇÃO

[RESENHA #1012] E se os gatos desaparecessem do mundo, de Genki Kawamura

Foto: Arte digital


APRESENTAÇÃO

Com os dias contados, um carteiro jovem e solitário de repente se vê diante de um grande dilema existencial.

Sem contato com a família, morando sozinho e tendo apenas o gato como companhia, ele não estava preparado para receber o diagnóstico de uma doença em fase terminal e a notícia de que teria apenas alguns meses, talvez até semanas, de vida. Entretanto, antes que possa se conformar com a fatalidade do destino, o Diabo aparece em sua casa e lhe faz uma proposta irrecusável: para cada coisa que o homem estiver disposto a fazer desaparecer do mundo, ele ganhará um dia extra de vida. E assim começa uma semana inusitada.

Porém, o que a princípio parecia simples se transforma em tormento. Afinal, como decidir o que faz a vida valer a pena? Como distinguir o que é dispensável daquilo que se ama? Enfrentando essas questões cruciais, o protagonista lida com um Diabo excêntrico e maquiavélico e embarca em uma jornada que o levará ― junto de seu querido gato ― aos limites entre a vida e a morte.

Em Se os gatos desaparecessem do mundo , Genki Kawamura presenteia o público com um romance sensível e fascinante que traz à tona a importância da vida e do mundo que nos cerca, permeado por reflexões primordiais e contundentes.


RESENHA


Foto: Arte digital


Neste romance situado no Japão, o narrador anônimo está contando os seus últimos dias. Trabalhando como carteiro, ele recebe a responsabilidade de cuidar do gato após a morte de sua mãe há quatro anos. À beira da morte, o narrador reflete sobre o propósito da vida. O título assustador de SE OS GATOS DESAPARECEM DO MUNDO esconde uma história emotiva sobre a existência e os sacrifícios que estaríamos dispostos a fazer por apenas mais um dia.


O diabo se apresenta ao narrador, informando-lhe que está nos estágios finais do câncer e tem apenas seis meses de vida restantes. O demoníaco personagem, que ostenta um visual de praia, é o 107º cliente do narrador e está determinado a fazer um acordo. Essa situação levanta questões sobre quais outras coisas desapareceram sem que percebêssemos e o que isso revela sobre a natureza dos objetos criados pelos seres humanos. Até mesmo a noção de tempo é posta em xeque nessa história.


Durante o desenrolar do romance, o narrador anônimo concorda em trocar alguns dias extras pela remoção de certos objetos do mundo. O primeiro item a desaparecer são os telefones celulares. O diabo lhe concede a oportunidade de fazer um último telefonema e, diante da escolha de quem ligar, o narrador entra em reflexão sobre o significado desses objetos para os seres humanos e como a vida poderia ser afetada se fossem tirados para sempre. A narrativa dos desaparecimentos me convenceu e a reflexão do narrador sobre eles pareceu muito pertinente. Ela leva o leitor a refletir sobre a vida sem esses objetos e como as invenções modernas influenciaram a humanidade e moldaram a natureza humana. Por exemplo, o narrador observa: "Quando o ser humano inventou o celular, também inventou a ansiedade de não tê-lo".


E onde entram os gatos nessa história? A mãe do narrador era uma amante de gatos e transmitiu esse amor, juntamente com seu gato, para ele. Quando o primeiro gato da família torna-se parte da vida deles e falece, a mãe entra em depressão - até que chega para fazer companhia. Enquanto enfrenta seus medos de morte iminente e reflete sobre a importância dos objetos que desaparecem para os humanos, ele lembra-se com carinho de sua mãe como a figura que manteve a família unida. Após a morte dela, quatro anos antes do início do romance, ele perde o contato com o pai. Além de tentar reconstruir o relacionamento com o pai, é a mãe quem o ensina a lidar com as adversidades da vida e fornece uma perspectiva única sobre os gatos. Ele sempre recorda de uma frase da mãe sobre os gatos que vivem com humanos: “Podemos pensar que possuímos gatos, mas não é assim. Eles simplesmente nos permitem desfrutar de sua companhia.”


Apesar de se tornar um pouco previsível ao longo da leitura, o desfecho do romance é profundamente comovente e emocionante. A escrita de Kawamura é marcada por uma simplicidade genuína que revela uma apreciação pela vida. O protagonista relutantemente enfrenta a inevitabilidade da morte, mas percebe que é hora de se despedir e resolver questões pendentes. A morte traz a oportunidade de encerrar assuntos inacabados e refletir sobre o que realmente importa na vida. Essa jornada emocionante é acentuada pelo estilo narrativo simples que valoriza cada palavra, tornando a leitura envolvente e rápida.


Se os Gatos Desaparecerem do Mundo é uma sobre a jornada de um jovem para aceitar o fim e fazer as pazes com ele. E, claro, também é sobre Gatos. Recomendo especialmente para os amantes de felinos, fãs de ficção japonesa ou aqueles interessados em escritos especulativos sobre a vida e a morte.

[RESENHA #1008] Nunca confie em uma geminiana, de Freja Nicole Woolf

Foto: Colagem Digital / Divulgação

APRESENTAÇÃO

Horóscopos preveem o futuro... certo? Em Nunca confie em uma geminiana , a jovem Cat Philips é viciada em astrologia e só tem um desejo para a temporada de Libra: encontrar o amor verdadeiro. Uma comédia divertida romântica com protagonismo lésbico e capa de Jenifer Prince (@jeniferrprince), com aparência das artes visuais com temática sáfica.

 A pré-venda com brindes acompanha um marcador de páginas e um baralho temático com os 12 signos do horóscopo.

Chegou a temporada de Libra e o amor está no ar. Mas a vida de Cat (aquariana), uma garota de 14 anos apaixonada por astrologia e poemas de amor, está cheia de problemas.

Primeiro, Cat é atropelada por um ônibus. Depois, tem que lidar com um pretendente (canceriano) de quem ela definitivamente não está a fim. Mas o pior de tudo é a paixão não correspondida de Cat pela melhor amiga, Alison Bridgewater (pisciana). Mas, quando a misteriosa e descolada Morgan Delaney (geminiana) mergulha no rio para salvar o caderno de Cat, uma nova faísca surge entre as duas.

Entre os altos e baixos da adolescência, será que Cat vai conseguir superar o crush de Alison e dar uma chance a Morgan? Ou será que ela deveria ser mais cautelosa? Afinal, Morgan é geminiana, e, se tem uma coisa que a Bíblia das Estrelas, o manual astrológico de Cat, a ensinado é a nunca — NUNCA — confiar em geminianos...


RESENHA


Foto: Arte Digital / Divulgação

"Nunca confie em uma geminianai" segue Cat, uma estudante de 14 anos obcecada por signos estelares e apaixonada por uma de suas melhores amigas, Alison Bridgewater. Apenas sua melhor amiga, Zanna, sabe como ela se sente. Os leitores podem acompanhar Cat em sua jornada enquanto ela tenta se abrir com Alison sobre seus sentimentos, apenas para ser guiada em uma nova direção pelas estrelas. O livro é dividido de acordo com as estações do zodíaco, o que adiciona um toque divertido à leitura.

A história foca no período dos quatorze anos de Cathleen Phillips, uma garota vive de acordo com seu livro de astrologia. Como aquariana, ela encontrou sua alma gêmea compatível, Alison Bridgewater, uma amiga ganense e branca, conforme indicado pelos gráficos. Cathleen está encantada por Alison, mas só sua melhor amiga, Zanna Szczechowska, sabe sobre seus sentimentos por garotas. Cathleen não confia em geminianos e pessoas com sotaque irlandês, o que a deixa em apuros quando Morgan Delaney, uma irlandesa geminiana, aparece na escola. Enquanto o ano astrológico muda, Cathleen se esforça para manter qualquer relacionamento romântico. Com sua personalidade acidentada e desajeitada, ela está determinada a alcançar um futuro idealista alinhado com seu signo. A autora, Woolf, apresenta os personagens com sinceridade, criando uma história cheia de emoções intensas e momentos divertidos.

Apesar de focar em uma personagem LGBTQ+, o livro retrata a jornada de Cat de uma maneira que parece mais voltada para jovens do ensino médio do que para jovens adultos. A imaturidade dos personagens e a falta de desenvolvimento real do caráter de Cat são pontos a serem considerados. Além disso, a quantidade de bullying retratada no livro parece exagerada, com um personagem em particular sendo muito desagradável sem enfrentar consequências significativas.

Cat é definitivamente uma personagem que não evolui, ela possui diversos pensamentos retrógrados e repletos de preconceito, ela pensa e age como alguém de sua idade: com imaturidade, e essa visão é uma chave que salva nossos pensamentos acerca da personagem.

"Nunca confie em uma geminiana" tem seus pontos positivos, apresentando uma personagem lésbica confortável com sua identidade e lidando com questões universais. É um livro indicado para adolescentes que estão lidando com paixões e questões de amizade, embora possa não agradar a todos os públicos jovens adultos devido à imaturidade dos personagens e ao enredo centrado principalmente em questões adolescentes.

Será que Cat conseguirá deixar de lado sua obsessão por Alison e seguir seus sentimentos por Morgan? Ou seria melhor ela ser cautelosa? Afinal, Morgan é geminiana, e de acordo com a Bíblia do Gato para as Estrelas, nunca se pode confiar completamente em um geminiano.

[RESENHA #1007] Gwen e Art não estão apaixonados, de Lex Croucher

Foto: Arte gráfica / Divulgação

APRESENTAÇÃO

Uma comédia romântica medieval queer sobre amores, amizade e a coragem necessária para fazer história.

Desde que nasceu, Arthur Delacey, descendente do rei Arthur e um futuro lorde com fama de devasso, está prometido a Gwendoline, a inteligente e geniosa princesa da Inglaterra. Mas eles parecem concordar em apenas uma coisa: quanto se detestam.

Às vésperas do casamento, Arthur é forçado a passar o verão em Camelot para se aproximar de Gwen. Porém, antes mesmo de terminar o primeiro dia de Art no castelo, Gwen o flagra beijando um rapaz.

Mas nem tudo está perdido para Art, que consegue chantageá-la em troca de silêncio após encontrar o antigo diário no qual a pequena Gwen confessava sua paixão pela única cavaleira mulher do reino, Bridget Leclair.

Detentores do segredo um do outro, Gwen e Art percebem que talvez seja melhor formarem uma aliança. A princesa só não imagina que, enquanto se entrega ainda mais à paixão por Bridget, Arthur vai se interessar pelo príncipe real.


RESENHA


Foto: Divulgação / Arte gráfica

Gwen, a princesa da Inglaterra, e Arthur, um futuro senhor, estão noivos desde jovens, mas se odeiam. Quando Arthur retorna para Camelot e Gwen o pega beijando um garoto, ele descobre que ela também pode ter segredos. Com medo de serem expostos, decidem fingir que estão apaixonados para se protegerem. No entanto, o plano pode não durar muito, já que Arthur se apaixona pelo irmão de Gwen, Gabriel, e ela passa mais tempo com Lady Bridget.

Os dois se tornam aliados relutantes ao descobrirem os segredos um do outro, garantindo uma proteção mútua ao fingir um romance. Mas com Gwen se aproximando de Bridget e Art se apaixonando por Gabriel, o caminho para o amor verdadeiro não será fácil. No final, Gwen e Arthur encontram a felicidade com outras pessoas, sendo Gwen apaixonada por Bridget e Arthur desenvolvendo sentimentos por Gabriel. Os personagens secundários, como Sidney e Bridget, impulsionam a história e ajudam os protagonistas em seus arcos de personagem. A jornada rumo ao amor verdadeiro pode ser complicada, mas juntos, eles conseguem superar todos os obstáculos.

Ao primeiro contato com a obra, poderemos inferir quase que instantaneamente que a autora trabalhará um enredo apaixonante entre o amor nutrido por duas pessoas que se odeiam, mas não é isso o que ocorre. A forma como a autora trabalha o romance medieval de forma inesperada torna a história deliciosamente divertida repleta de segredos e troca de farpas. Este é, se não, o melhor livro do gênero, um dos primeiros da lista à ser favoritado por todo leitor atento ao enredo.


A AUTORA

Lex Croucher cresceu em Surrey, Inglaterra, a ler muitos livros e a travar amizade com desconhecidos na Internet. Atualmente, vive em Londres com um gato idoso. Reputação é o seu romance de estreia. O seu primeiro romance young adult, Gwen and Art Are Not In Love, será publicado em 2023.


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