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[RESENHA #969] Os dezoito de brumário de Luis Bonaparte, de Karl Marx

SINOPSE

Em O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte, Karl Marx expõe de que modo a França que, mais uma vez, inspirou o mundo a lutar contra o absolutismo monárquico, através da Revolução de Fevereiro de 1848, se revelou um exemplo caricato de suas próprias contradições.

Após frear um refluxo conservador e destituir Luís Felipe I como rei, o país elegeu Luís Bonaparte, sobrinho do seu antigo imperador, Napoleão, como presidente da República recém-declarada. Aquela sociedade permitiu-se enganar pelo ímpeto popular do novo presidente, que, encoberto pelos acenos de ampliação de direitos civis, conduziu o golpe de Estado que o consagrou imperador Napoleão III, refazendo a posição autoritária do poder bonapartista.

É esse o contexto histórico sobre o qual Karl Marx debruçou nesta obra, uma primorosa crítica que revelou as primeiras experiências empíricas de seu materialismo e se tornou um dos textos mais importantes da ciência política. Esta edição, traduzida por Leandro Konder e Renato Guimarães, conta com preparação, introdução e notas de rodapé da socióloga Sabrina Fernandes, que apresenta a importância da obra para nossa época e explica detalhes do original alemão de modo acessível à leitora e ao leitor brasileiros. Assim, ela continua o trabalho de divulgação marxista iniciado com O manifesto comunista, dando seu segundo passo na reapresentação das edições de Karl Marx publicadas pela Editora Paz & Terra.

Temos, portanto, a oportunidade de entender não apenas quais foram as explicações de Marx sobre o golpe de Estado de Napoleão III, mas também como esse tipo de expediente continua sendo receita para líderes carismáticos subverterem insurreições populares em prol de si mesmos. Sabrina Fernandes nos ensina como o famoso enunciado de Marx sobre a tragédia e a farsa é nítido também para acontecimentos políticos recentes no Brasil – dos protestos de junho de 2013 ao governo de Jair Bolsonaro.

RESENHA

O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte" de Karl Marx é uma obra profunda e brilhante que analisa o golpe de Estado que levou Louis-Napoléon Bonaparte ao poder na França em 1851. Marx, com sua abordagem materialista da história, examina os eventos reais e os situa no contexto da luta de classes, revelando as verdadeiras forças motrizes por trás da história.

Ao contrário dos livros didáticos tradicionais de história, esta leitura traz um olhar renovado e desprovido de preconceitos. Marx analisa objetivamente os eventos, utilizando metáforas e recursos literários para transmitir sua visão da realidade diante de seus olhos.

Ao explorar o papel do Estado e da luta de classes, Marx demonstra como as revoluções burguesas apenas aperfeiçoaram a opressão das classes dominantes. Ele propõe, pela primeira vez, a ideia de que o proletariado não deve apenas assumir o aparato estatal existente, mas desmantelá-lo completamente.

Mesmo diante da derrota de movimentos como a Comuna de Paris, Marx mantém a esperança para aqueles que se sentem desesperançados. Sua análise continua sendo uma base importante para o debate político e acadêmico, especialmente em momentos em que variantes bonapartistas surgem na América Latina.

O livro "Os Dezoito de Brumário, de Luís Bonaparte" de Karl Marx é uma obra primorosa que mergulha no contexto histórico da Revolução Francesa, especificamente do golpe de Estado de Napoleão Bonaparte, ocorrido em 1851. Neste livro, Marx analisa em detalhes os eventos que levaram ao estabelecimento do regime bonapartista na França e faz uma série de reflexões sobre a natureza do poder político e a dinâmica das classes sociais.

Uma das principais contribuições do livro é a análise minuciosa que Marx faz do papel das classes sociais e das lutas de poder na consolidação do regime bonapartista. Ele destaca que a burguesia francesa, após a Revolução de 1848, estava dividida e incapaz de resolver seus conflitos internos. Nesse contexto, Napoleão Bonaparte, apoiado pela classe agricultora e beneficiando-se da crise econômica e política em curso, conseguiu se posicionar como uma figura forte e carismática, capaz de unir diferentes classes sociais em torno de seu regime.

Marx também discute a importância do golpe de Estado de Napoleão Bonaparte para a história política da França e do mundo. Ele argumenta que o regime bonapartista representou uma espécie de "retorno ao passado", marcado pela centralização do poder nas mãos de um líder autoritário, em detrimento dos avanços democráticos conquistados durante a Revolução Francesa. Ao analisar os eventos ocorridos no período conhecido como "Dezoito de Brumário", Marx também aponta para questões mais amplas, como a natureza do Estado e o papel da violência política na tomada e na manutenção do poder.

Outro ponto interessante do livro é a forma como Marx utiliza uma vasta gama de fontes históricas para sustentar suas análises. Ele cita inúmeros artigos de jornais, discursos políticos e documentos oficiais para ilustrar os eventos e as disputas de poder da época. Esse rigor metodológico confere uma grande credibilidade às conclusões de Marx e permite ao leitor ter uma compreensão mais ampla e precisa dos acontecimentos.

Além disso, a escrita de Marx é envolvente e marcada por seu estilo característico, que combina erudição, clareza e ironia. Ele é habilidoso em expor contradições e hipocrisias tanto nos discursos políticos quanto nas ações dos atores envolvidos. Sua crítica incisiva aos poderosos e sua defesa dos interesses das classes oprimidas são constantes ao longo do livro, tornando-o uma obra carregada de conteúdo político e social.

Em resumo, "Os Dezoito de Brumário, de Luís Bonaparte" é uma leitura imprescindível para aqueles interessados na história política e social do século XIX, bem como para aqueles que desejam entender mais profundamente a teoria marxista. Karl Marx utiliza uma vasta gama de fontes e oferece uma análise detalhada dos eventos que levaram ao golpe de Estado de Napoleão Bonaparte, explorando aspectos históricos, citando fontes primárias e fornecendo informações pertinentes à compreensão do período.

Marx destaca que os grandes eventos históricos e personagens aparecem duas vezes: uma vez como tragédia e outra como farsa. Ele relaciona o golpe de Estado de Napoleão Bonaparte em 1799 com o golpe de seu sobrinho, chamado de "a segunda edição do 18 de brumário". Marx vê o primeiro golpe como um momento heroico da burguesia e o segundo como uma reação militar repressiva.

O autor busca explicar o movimento da história através das lutas de classes sociais. Sua obra é uma continuação do livro anterior, As Lutas de Classes na França de 1848 a 1850, onde ele discute a dominação da burguesia e analisa o período de 1848 a 1851 sob o ponto de vista do antagonismo de classe.

Marx faz uma crítica negativa ao campesinato, considerando-os como aliados da classe dominante. Ele os compara a um saco de batatas, sem vontade própria, prontos para serem influenciados por forças superiores, representadas pelos Bonaparte. Segundo Marx, a dinastia Bonaparte não representa os camponeses revolucionários, mas sim os conservadores, que desejam consolidar sua condição social e se apoiam na superstição e preconceitos dos camponeses.

Em resumo, Marx vê a história como uma sucessão de eventos trágicos e cômicos, impulsionada pelas lutas de classe, onde o campesinato surge como um aliado da classe dominante.

[RESENHA #967] Antígona: Ela está entre nós, de Andréa Beltrão


Há 2.500 anos, Antígona, de Sófocles, é uma dramaturgia comovente que conquista a atenção dos espectadores. A história da princesa que desafiou um rei para que o corpo do próprio irmão fosse sepultado é reencenada brilhantemente por Andrea Beltrão – neste que é um de seus trabalhos mais audaciosos e que lhe rendeu o Prêmio APCA. Ao reinventar a tragédia grega, Andrea Beltrão não apenas concebe, junto ao diretor Amir Haddad, um sucesso de público e crítica, mas dá novo sentido a uma das personagens mais extraordinárias da história do teatro, posicionando-a frente a frente com as maiores lições de luta deste tempo.

Antígona é um símbolo de insubmissão. Alguém que converteu o luto em ativismo político. A perda, em força de vida. Ao recriá-la, Andréa Beltrão reconhece a magnitude de sua persistência e traz Antígona para o presente.

Neste livro, a atriz, produtora e diretora de teatro conta sobre o processo de criação e destaca os principais trechos que usa para refabular a história da jovem que desafia o Estado. Quem entra em contato com a Antígona de Andrea Beltrão não permanece incólume. A presença da protagonista pode ser vivenciada – através da tradução de Millôr Fernandes do texto de Sófocles, que acompanha integralmente esta edição –, como se estivéssemos no antigo Teatro de Dionísio. Ela está entre nós.

RESENHA

Antígona é uma adaptação teatral do clássico de Sófocles, traduzido por Millôr Fernandes, que narra a história de uma princesa que desafia o poder do rei para sepultar seu irmão morto em guerra. A peça, que estreou em 2017, é fruto da parceria entre a atriz Andréa Beltrão e o diretor Amir Haddad, que assinam juntos a dramaturgia.

A história de Antígona, de Sófocles, é uma tragédia grega que narra o conflito entre a princesa Antígona e o rei Creonte, sobre o destino do corpo de Polinice, irmão de Antígona, que morreu em guerra contra Tebas. Antígona quer sepultar o irmão, seguindo as leis divinas, mas Creonte proíbe, seguindo as leis humanas. Antígona desafia o rei e é condenada à morte, provocando uma série de desgraças na família real de Tebas. A peça é considerada um clássico da literatura mundial, que aborda temas como a liberdade, a justiça, o amor, o destino e a morte.  A obra é uma reflexão sobre a liberdade do cidadão diante do Estado, e sobre os conflitos éticos e morais que envolvem a escolha entre obedecer às leis humanas ou às leis divinas. Antígona representa a resistência, a coragem e a lealdade, mas também a rebeldia, a obstinação e a tragédia.

No palco, Andréa Beltrão interpreta todos os personagens da trama, usando apenas alguns adereços para mudar de identidade. Ela dialoga com a plateia em um ritmo acelerado e envolvente, que mistura humor e emoção. A atriz demonstra sua versatilidade e talento ao dar vida a Antígona, Creonte, Ismênia, Hêmon, Tirésias e outros.

Antígona é uma peça que traz a atualidade de um texto milenar, que fala sobre temas universais e atemporais, como o amor, a justiça, a honra, o destino e a morte. É uma obra que convida o espectador a pensar sobre o seu papel na sociedade, e sobre os valores que norteiam as suas ações.

[RESENHA #943] A anatomia do fascismo, de Roberto O. Paxton

APRESENTAÇÃO: O autor demonstra que, para compreendermos o fascismo, temos que examiná-lo em ação - levando em conta o que ele fez, e não apenas o que ele dizia ser. Ele explora as falsidades e as características em comum do fascismo; a base social e política que permitiu que ele prosperasse; seus líderes e suas lutas internas; as diferentes formas pelas quais ele se manifestou em diferentes países - França, Grã-Bretanha, os Países Baixos, o Leste Europeu e até mesmo na América Latina, como também na Itália e na Alemanha; de que forma os fascistas encararam o Holocausto e, por fim, se o fascismo ainda seria possível nos dias de hoje.

RESENHA

O livro "A Anatomia do Fascismo", escrito por Robert O. Paxton, apresenta aos historiadores da história política e intelectual um argumento crucial sobre o papel das ideias nos movimentos políticos. Embora reconheça a importância das ideias por trás do fascismo para entender suas origens e estágios iniciais, Paxton defende que o que os fascistas fizeram uma vez no poder é igualmente, se não mais, relevante para compreender e diagnosticar o fascismo como um movimento político com consequências extraordinárias.

Aceitar esse argumento implica que os historiadores das ideias talvez tenham que reduzir algumas de suas principais abordagens. Embora seja poderoso abordar a história política, social e cultural através do estudo das ideias, isso automaticamente implica que as ideias podem revelar e explicar como e por que as coisas aconteceram de determinada maneira. Novamente, Paxton não nega essa abordagem, mas sugere que o papel da história intelectual não pode ser central ao analisar o fascismo, pois muitas vezes as ideias se transformam ou desaparecem completamente quando os fascistas assumem o poder. Portanto, é necessário compreender como pode haver uma desconexão entre ações e ideias, assim como a causalidade, e como as manipulações retóricas frequentemente representam estratégias políticas conscientes ou subconscientes como as verdadeiras fontes de descontentamento.

Um exemplo que Paxton explora é a postura antiestabelecimento e antipolítica dos partidos fascistas em seus estágios iniciais. Desprezar todas as instituições do país e afirmar estar "acima da política" eram características comuns tanto no início do fascismo alemão quanto no italiano. Os nazistas, em particular, eram habilidosos na criação de organizações sociais alternativas para todas as funções possíveis, a fim de afastar os alemães de lealdades tradicionais e ligá-los emocionalmente ao partido. Segundo Paxton, fingir ser "antipolítico" muitas vezes era eficaz entre pessoas cuja principal motivação política era o desprezo pela política. Em situações em que os partidos existentes estavam limitados a fronteiras de classe ou religiosas, como partidos marxistas, pequenos proprietários ou cristãos, os fascistas podiam apelar prometendo unir as pessoas em vez de dividi-las. No entanto, essa característica não era exclusiva dos fascistas, que se saíram particularmente bem em nações que enfrentavam sérias crises de legitimidade. Na Alemanha, por exemplo, todos os partidos antissistema uniram-se para culpar a República de Weimar por seu fracasso em lidar com qualquer uma das crises. Ao fazer comparações entre os eleitores de Trump e os apoiadores de Sanders, é importante reconhecer essa limitação ao explorar esse aspecto do fascismo para buscar uma alma "essencial".

Uma vez no poder, os fascistas tendem a rejeitar em grande parte as discussões antiestablishment (designa um indivíduo, grupo ou ideia que é contra as instituições oficiais). Embora realizem ações drásticas e revolucionárias com o aparato estatal, como o Holocausto, que pode ser considerado uma forma de "mal radical" de acordo com Arendt, eles geralmente mantêm as estruturas existentes do Estado e tentam controlá-las. Isso pode ser feito substituindo-as por legalistas ou criando estruturas partidárias paralelas que desempenham funções semelhantes, permitindo a existência de uma burocracia pública mais tradicional. Na Itália, Mussolini fez poucas alterações em certos pontos sensíveis (como a Igreja Católica), o que levou à marginalização ou descarte de alguns de seus seguidores mais puritanos. Em termos de transformação do Estado, os regimes fascistas fizeram algumas mudanças significativas, mas deixaram a distribuição de propriedades e a hierarquia econômica e social praticamente intactas, diferindo assim da noção clássica de revolução desde 1789.

O mesmo padrão é observado na retórica econômica fascista inicial em comparação com as políticas adotadas uma vez no poder. Embora os fascistas tenham adotado uma retórica antiburguesa e até anticapitalista em seus primeiros dias de organização (especialmente na Alemanha, onde havia uma forte dose de antissemitismo), essas discussões não tiveram um impacto significativo nos sistemas econômicos quando os fascistas assumiram o poder. De fato, como afirma Paxton, "na prática, descobriu-se que o anticapitalismo dos fascistas era altamente seletivo... em nenhum aspecto as propostas iniciais do fascismo diferiam mais do que o que os regimes fascistas realmente fizeram em termos de política econômica". No entanto, os fascistas não eram simplesmente marionetes do capital, pois viam a economia e seus capitalistas como um meio para alcançar um objetivo maior. "A política econômica fascista se desenvolvia com base em prioridades políticas, não na lógica econômica". Isso fornece uma compreensão clara e convincente da relação entre fascismo e capitalismo. Embora eu acredite que o fascismo seja uma crise resultante do capitalismo, isso não significa que tenha sido apenas uma criação do capital ou um resultado inevitável. Na verdade, os fascistas priorizaram muitas coisas além dos resultados financeiros, como a conquista territorial, mas se mostraram muito mais consistentes em sua postura anti-socialista e anti-igualitária do que a retórica inicial sugeria.

O termo "fascismo" surgiu em 1919 com Mussolini e desde então tem sido frequentemente aplicado de forma generalizada a diversos grupos políticos à direita da pessoa que o utiliza. Paxton, um historiador, busca resgatar o significado do termo, reconhecendo que uma definição restrita é impossível. Em sua busca por compreensão, Paxton examina como uma variedade de movimentos fascistas conquistaram seguidores, estabeleceram alianças e exerceram o poder. Embora existam variações ao longo do tempo e do espaço, ele identifica características que distinguem o fascismo de outros regimes autoritários. Os fascistas são marcados por um estilo de comportamento político que enfatiza queixas históricas, culto à liderança, confiança em movimentos de massa de militantes nacionais, repressão de liberdades democráticas e uso de violência como ferramenta política. O livro "Vichy France", de Paxton, se tornou referência na área, apesar de sua tese controversa de que o regime de Vichy não foi apenas imposto pelos nazistas, mas tinha raízes internas. Com base em décadas de pesquisa e ensino, "A Anatomia do Fascismo" provavelmente será igualmente confiável, fornecendo um ensaio bibliográfico aprofundado que guiará acadêmicos e estudantes de pós-graduação nos próximos anos.

O valor deste livro vai além da compreensão histórica; ele é fundamental para qualquer pessoa preocupada com a sobreposição entre os movimentos contemporâneos de extrema direita e os fascismos clássicos. Paxton é refrescante porque não é excessivamente historicista e, ao mesmo tempo, busca definir conceitos de forma útil. Para mim, como historiador intelectual, o mais instigante é como Paxton interage com as ideias do fascismo, sem presumir que são a única ou mesmo a principal fonte para entender o fascismo. As ideias políticas são ferramentas políticas e, na maioria das vezes, podem ser adotadas ou abandonadas quando não são mais úteis. Que ideia simples, focar tanto ou mais no que os fascistas realmente fazem, ou seja, como chegaram a desempenhar o papel máximo em nossa imaginação moderna como o mal absoluto.

Essa simples percepção se torna extremamente relevante para a direita contemporânea ao considerarmos a grande desconexão entre o que os conservadores dizem acreditar e as políticas que realmente seguem ou condenam. Dos seguidores religiosos aos defensores do livre mercado, há pouca ou nenhuma consistência a ser encontrada. Os ativistas antiaborto valorizam a vida, mas parecem ignorar as necessidades médicas do bebê após o nascimento, e os libertários acreditam na liberdade em todas as áreas da vida, exceto no trabalho, onde passam a maior parte do tempo.

Essas contradições não surgem da confusão dos próprios conservadores, por mais autoilusórios que possam ser, mas estão integradas em sua ideologia política, pois servem para tornar aceitáveis e legítimas ideias que de outra forma seriam ofensivas ou claramente imorais. Portanto, essas ideias não são menos importantes por serem falsas, e o trabalho dos cidadãos preocupados em documentar o quão desastrosamente eficazes essas ideias podem ser não é menos urgente.

[RESENHA #681] Meditações, de Marco Aurélio

APRESENTAÇÃO

Conjunto de doze livros escritos originalmente em grego entre os anos 170 e 180, trata-se de diários repletos de anotações, aforismos, citações célebres e reflexões pessoais de um homem preocupado em encontrar a maneira mais correta de viver em sociedade e de acordo com a própria consciência.

O estoicismo, escola filosófica que Marco Aurélio integrava, preconiza a felicidade principalmente por meio do autocontrole e do autoexame ― faculdades que estão ao alcance de todos nós. A paz interior e o bem comum são possíveis mesmo diante das adversidaes, mas, para tal, é preciso equilíbrio, humildade e serenidade ― virtudes que podem ser conquistas pelo exercício da razão, a capacidade humana mais incrível de todas.

Seja no século 2 ou no 21, o mundo sempre apresentou desafios, guerras, discórdia, traições e corrupção de valores. Alguns indivíduos, no entanto, lutam bravamente para o aprimoramento do espírito, e o imperador-filósofo Marco Aurélio está nesse ilustre rol.

Meditações é um guia prático e filosófico para aqueles que desejam encontrar a felicidade e a paz interior, o bom convívio social e um mundo mais justo e harmonioso. Esta edição da Paz & Terra conta com prefácio inédito do historiador, professor e um dos maiores intelectuais brasilieros da atualidade, Leandro Karnal.

Uma aventura através de um clássico e em prol do bem viver.

RESENHA

Lúcio Aurélio Antonino Maximiliano, em latim Lucius Aurelius Antoninus Maximilianus, nasceu em 26 de abril de 121 e faleceu em 17 de março de 180, tendo sido imperador de Roma de 161 a 180. Foi um dos governantes de Roma conhecidos como os cinco notáveis imperadores e o último imperador da Pax Romana.

O período de governo de Lúcio Aurélio foi marcado por conflitos militares. No Oriente, o Império Romano enfrentou com sucesso um Império Parta revitalizado e o Reino insubordinado da Armênia. Lúcio derrotou os Marcomanos, Quados e Sármatas nas Guerras Marcomânicas; no entanto, esses e outros povos germânicos passaram a representar uma ameaça preocupante para o Império. Acredita-se que a perseguição aos seguidores do cristianismo no Império Romano tenha aumentado durante seu reinado. A Peste Antonina irrompeu em 165 ou 166 e causou uma devastação na população do Império Romano, resultando na morte de cinco milhões de pessoas.

Reflexões foi escrito em grego Koiné, intitulado Τὰ εἰς ἑαυτόν, literalmente "coisas para mim mesmo", é uma série de 12 volumes em que Lúcio Aurélio registra suas anotações pessoais sobre o estoicismo como fonte de orientação e autodesenvolvimento. Lúcio Aurélio enfrentava desafios, conspirações e obstáculos durante o dia, e à noite se entregava a uma profunda reflexão e registrava suas anotações pessoais antes de dormir.

O estilo de escrita que permeia o texto é simplificado, direto e reflete a perspectiva estoica de Lúcio, que não se considerava parte da realeza, mas sim um homem entre outros homens, permitindo ao leitor se relacionar com sua sabedoria.

Um tema central das reflexões é a importância de analisar o julgamento de si mesmo e dos outros em uma perspectiva cósmica. A aceitação da morte e a discussão sobre a existência ou não de uma divindade são temas recorrentes em todo o livro.

É relevante explicar o termo "daemon", amplamente utilizado ao longo do texto. Daemon (em grego δαίμων) pode ser traduzido como “divindade” ou “espírito”. O termo em latim é daemon, que deu origem à palavra em português “demônio”.

Algumas das citações mais marcantes da obra:

1. Do meu avô Verus [aprendi] bons costumes e a controlar o meu temperamento.

3. Com minha mãe, aprendi a devoção aos deuses, a generosidade e a abstinência, não apenas de más ações como também de maus pensamentos, além do estilo de vida simples, muito distante do excesso dos ricos.

10. Com Alexandre, o Gramático, a abster-me de encontrar defeitos e não repreender aqueles que proferiram barbarismos, solecismos ou expressões estranhas, mas introduzir de modo hábil na minha reposta ou confirmação a expressão que deveria ter sido empregada, ou propor alguma outra sugestão adequada, ou ainda investigar a coisa em si e não a palavra.

13. Com Catulo, a não ser indiferente quando um amigo faz críticas, mesmo quando essas são infundadas, mas a tentar fazer com que ele recupere sua disposição habitual. E a estar pronto para falar bem dos professores, como faziam Domício e Atenodoto, e a amar meus filhos com sinceridade.

4. [parte 2] lembra-te de quanto tempo adiaste tais coisas e quantas vezes recebeste uma oportunidade dos deuses, e ainda assim não a usaste. Deve perceber finalmente de que universo fazes parte e de que administrador universal tua existência fluiu. Um tempo limitado foi designado para ti. Se não fizeres uso dele para dissipar as nuvens de tua mente, ele passará, tu partirás, e não haverá uma segunda chance.

15. [parte 2] ''Lembra-te de que tudo é opinião'' é manifesto esse dito cínico Mônimo. É manifesta é também utilidade do que foi dito, desde que se compreenda o cerne daquilo o que foi dito.

2. [parte 4] Que nenhum ato seja feito sem propósito, nem de outro modo que não seja de acordo com os princípios perfeitos da arte.

17. [parte 4] Não ajas como se fosse viver dez mil anos. A morte paira sobre ti. Enquanto viveres, enquanto estiver em teu poder, sê bom.

27. [parte 4] Seja o universo bem-organizado ou um amontoado de caos, ele permanece sendo o universo. Mas seria possível haver determinada ordem em ti e a desordem no Todo. E sendo tudo de tal forma separado, difuso, simpático?

O AUTOR

Marco Aurélio Antonino Augusto (121, Roma/Itália – 180, Vindobona/Aústrai) foi um imperador romano, filósofo e escritor, sendo último grande expoente do estoicismo. Seu único livro, Meditações, foi escrito como um diário de autoaperfeiçoamento, e não se sabe se havia intenção de torná-lo público. Marco Aurélio é considerado no Ocidente um dos “Cinco Bons Imperadores”, símbolo magno da Era de Ouro do Império Romano. Após a sua morte, Roma mergulhou rapidamente em declínio.

Lançamentos do Grupo Editorial Record :: Maio


O grupo editorial Record é o maior conglomerado editorial da América Latina, sendo um conjunto editorial de 16 editoras:Record; Verus; Bertrando Brasil; José Olympio, BestSeller, Galera; Junior; Galerinha; Rosa dos tempos; Civilização brasileira; Paz e terra; Difel; Best Business. BestBolso; Viva Livros e Nova Era.  Confira abaixo os títulos recém lançados do grupo para o mês de Maio.













[RESENHA #478] Leitura do mundo, leitura da palavra, de Paulo Freire

"Ler o mundo" é um dos termos de Freire - como "diálogo", "relação professor-aluno", "conscientização", "conhecimento experiencial" - que se expandiram para se tornar um pilar conceitual ou argumento relevante no infinito. trabalhos e propostas pedagógicas tanto para a educação quanto para os movimentos sociais. Uma rápida busca na web com a palavra-chave "ler o mundo" revela dezenas de obras em que o termo aparece em conexão com diversos temas, muitos dos quais sequer mencionam Freire ou tratam pouco da obra do autor. em que o termo é usado.presents.

Esses estudos muitas vezes trabalham com a ideia geral de “ler o mundo”1 como a percepção da realidade, experiência de vida, compreensão ou significado de algo, com base na afirmação – explícita ou não dita – generalizada de que “ler o mundo precede a leitura da palavra" (FREIRE, 1982a, p. 9). Na consulta que fizemos, em que rapidamente identificamos mais de vinte textos, notamos que os estudos que utilizam esse argumento abrangem temas tão diversos como alfabetização infantil, educação de jovens e adultos, formação de leitores, meio ambiente, comunicação, ensino de química, geografia, ciências , arte. Eles geralmente se baseiam em uma certa ideia de educação interdisciplinar e formativa, bem como em uma rejeição da educação instrucional sem considerar adequadamente o que é educação crítica.

Entendemos que, apesar do entusiasmo pedagógico e da demonstração de um desejável compromisso com a educação, a fácil aquisição de conceitos e seu uso quase ingênuo, senão epistemologicamente caótico, gera equívocos tanto sobre o que é ler quanto sobre o próprio conceito de leitura. limitado à sanidade. Neste artigo, exploramos - por meio de um estudo extenso e cuidadoso da obra de Paulo Freire - os significados e aplicações que podem ser apreendidos de "ler o mundo" e apontamos os limites do uso do termo.

Organizámos a exposição em duas secções: na primeira, procurámos centrar-nos na emergência do pensamento de Freire e na sua contextualização no campo da pedagogia crítica; na segunda examinamos a compreensão de Paulo Freire sobre "ler o mundo" e como ela se insere em seu pensamento e como interage com a própria questão da leitura.

A proposta de educar de Freire aparece no cenário político e pedagógico da década de 1960, quando o mundo vivia um forte movimento libertário, incluindo um importante movimento cristão que se consolidou na teologia da libertação, além da Guerra Fria e do predomínio de dois poderes totalitários. Ao mesmo tempo, as humanidades - educação, psicologia, sociologia, antropologia - têm criado novos paradigmas que indicam o papel do sujeito no processo de aprendizagem e propõem metodologias de ensino que desafiam os modelos tradicionais baseados na aquisição de conhecimento por exposição e repetição ostensiva . .

Paulo Freire destacou-se no cenário político-educativo da época com uma proposta de educação de adultos – a alfabetização – que subordinava o ensino e a aprendizagem da escrita à tomada de consciência dos “educados” de si e do mundo, proposta na qual assumiu categoricamente o reconhecimento de que o propósito de aprender algo – no caso, alfabetizar-se – está intrinsecamente relacionado ao propósito de poder atuar no mundo para transformá-lo. Opôs a educação para a dominação ("educação bancária") à educação para a libertação - realizada com os oprimidos: "Quero aprender a ler e escrever para mudar o mundo" [é] a afirmação de um paulista analfabeto. para quem conhecer corretamente significa intervir na realidade conhecida” (FREIRE, 1967, p. 112).

O seu pensamento – e este é o sinal que cruzou o seu caminho – rejeitou fortemente qualquer fantasia idealista e assumiu a concretude histórica da condição humana. Em sua obra mais influente, Pedagogia do oprimido (FREIRE, 1968), escrita durante o exílio no Chile de 1967 a 1978, ele observa que

[...] a educação como prática de liberdade, em oposição àquela que é prática de dominação, implica a negação do homem [e mulher] abstratos, isolados, relaxados, desligados do mundo, bem como a negação do o mundo. como uma realidade ausente de homens [e mulheres]. A reflexão que ele propõe, porque autêntica, não é sobre essa abstração masculina [e feminina], nem sobre esse mundo sem masculino [ou feminino], mas sobre homens [e mulheres] em suas relações com o mundo. Relações em que co-ocorrem a consciência e o mundo. Não há consciência antes e mundo depois e vice-versa.(FREIRE, 1968, p. 45).

Na tentativa de compreender homens e mulheres - o homem em sua história -, bem como na tentativa de fundamentar teórica e epistemologicamente sua ideia de "consciência", Freire tenta compreender a própria consciência que cada indivíduo - mas também classes sociais - possui de si mesmo e do mundo.

E se no estado de estranhamento histórico em que os camponeses ("áreas altamente atrasadas do país") se encontram, isolados e presos na história, Freire (1967, p. 58) reconhece uma consciência não transitiva - que " representa quase nenhum compromisso entre o homem [e a mulher] e sua existência" porque ele está vinculado "a um plano de vida mais vegetativo com áreas estreitas de interesse e preocupação" para que ele escape "da preocupação com problemas que estão fora de sua esfera biologicamente vital" — ao considerar o estado da vida urbana e industrial, ele postula um estado de consciência transitória que

[...] amplia sua capacidade de perceber e responder às sugestões e questionamentos que vêm do seu entorno e aumenta seu poder de diálogo não só com o outro homem [mulher], mas com o seu mundo [...]. Seus interesses e preocupações agora se estendem a esferas mais amplas do que a simples esfera vital. (FREIRE, 1967, p. 59).

Nesse estado, um novo e profundo paradoxo se manifesta: a mudança no estado e no ser da sociedade, que resultaria da expansão da consciência decorrente de uma maior mobilidade e condições de existência, produz uma alienação ainda mais severa. A consciência transitiva, limitada a si mesma e aos modos de vida cotidianos do mundo moderno, manifesta-se como “predominantemente ingênua”, caracterizada pela “simplicidade na interpretação dos problemas” e “tendência a julgar que já passou o melhor momento”. Graças à massificação, essa transição representa uma "forte tendência à sociabilidade", "impenetrância à investigação", que corresponde a "um gosto exacerbado por explicações de contos de fadas", "fragilidade na argumentação" e "forte emotividade". Nesse sentido, não cria exatamente um diálogo, mas uma polêmica, voltando-se para "explicações mágicas".

É justamente essa distorção da transitividade ingênua - se não elevada à crítica, conduz ao tipo de consciência que Marcel chama de "fanatizada" [...]. Este é um dos grandes perigos, das grandes ameaças a que nos conduz o irracionalismo sectário. (FREIRE, 1967, p. 59) 3

Essa forma de consciência - que está de acordo com a escola e educação adequada ao modo de produção e às relações de poder estabelecidas pelo capitalismo na atualidade - não eleva a pessoa a um estado de liberdade ("a verdadeira matriz da democracia" ). Além disso, mostra que a consciência crítica não surge espontaneamente, mas apenas por meio de uma ação política consistente, que inclui a educação. Freire tem plena consciência de que o estado de opressão não mudará por causa da educação revolucionária, embora tenha um papel a desempenhar.

Para nós, crítica significa apropriação crescente de sua posição no contexto. Significa sua inserção, sua integração, a representação objetiva da realidade. A consciência é, portanto, o desenvolvimento da consciência. É por isso que não será algo resultante apenas de mudanças econômicas, por maiores e importantes que sejam. A crítica, como a entendemos, deve estar fundamentada no trabalho pedagógico crítico, amparada em condições históricas favoráveis (FREIRE, 1967, p. 60).

No ensaio "Ação Cultural pela Libertação", elaborado no mesmo período (1969) e publicado no Brasil alguns anos depois como capítulo do livro Ação Cultural pela Liberdade e Outras Escritas (FREIRE, 1976a), a pedagoga dá continuidade a essa análise com os termos “consciência semi-não transitiva”, “consciência transitiva ingênua” e “consciência crítica”, correspondendo a consciência crítica ao estágio em que os oprimidos se veem como uma “classe em si mesmos”.

Baseada em mitos, a ação cultural de dominação não problematiza a realidade. Na ação cultural problematizadora [de libertação], a realidade anunciada é o projeto histórico a ser realizado pelas classes dominadas, em cujo processo a consciência semi-intransitiva e ingênua é superada pela consciência crítica - a "consciência máxima possível" (FREIRE, 1976a, p. 67).

Alguns anos depois, já em outro momento histórico, embora não menos dominado pelo autoritarismo, Freire retoma a questão da consciência em Pedagogia da Autonomia (FREIRE, 1996) e examina o princípio da "curiosidade" humana.

Novamente, existem, por assim dizer, diferentes estados de consciência. Para tanto, segue novamente o princípio do não fechamento do ser humano - já presente na Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1968) e fortemente confirmado na Pedagogia da Esperança - Encontro da Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1992) - segundo a qual homens e mulheres estão "em constante movimento de busca". A "curiosidade", condição inerente à existência, implica o movimento de questionamento e autoquestionamento, "fenômeno vital" sem o qual "não haveria criatividade" porque é "a curiosidade que nos move e nos torna pacientemente impacientes com um mundo não fizemos, acrescentamos algo que fazemos” (FREIRE, 1996, p. 15).

Isso não quer dizer que não sejam diferentes quando se trata de modos de estar no mundo. Assim, dependendo das formas como os indivíduos vivenciam a vida, a curiosidade pode tornar-se 'ingênua', tornar-se 'crítica' como resultado da própria ação questionadora e alcançar sua plena realização como 'epistemológica' quando o 'epistemológico' é fundamentado. objeto', de modo que 'quanto mais criticamente se exercita a capacidade de aprender, mais se constrói e desenvolve a 'curiosidade epistemológica'" (FREIRE, 1996, p. 13).

Freire insiste na observação de que, em ambas as formas, a curiosidade é expressão de um mesmo movimento constitutivo da subjetividade: “a curiosidade ingênua [...] curiosidade epistemológica". Assim, ele enfatiza que a diferença entre eles é uma diferença de "superação" e não de "ruptura", realizada por meio da "crítica" daquilo que "ao ser criticado torna-se uma curiosidade epistemológica, metodicamente se "rigoriza" na abordagem o objeto significa com maior precisão seus achados” (FREIRE, 1996, p. 15).

Essa forma de perceber como criamos, nos colocamos e nos percebemos no mundo mostra uma visão que quer ser sensível à vida comum e sua expressão no senso comum - "conhecimento da pura experiência feita" - característica da curiosidade ingênua, reforçando a incompletude da seres humanos e sua abertura de conhecimento. A aposta pedagógica é que o aluno, provocado pela reflexão que surge numa relação verdadeiramente dialógica, amplie a sua percepção do mundo e aborde primeiro a curiosidade crítica e depois a curiosidade epistemológica.

A verdadeira dialogicidade, em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença, sobretudo no respeito a ela, é um modo de ser coerentemente exigido por seres que, no inacabado, considerando-se como tal, tornam-se radicalmente éticos. (FREIRE, 1996, p. 31).

Portanto, não há como ignorar suas experiências de conhecimento no estabelecimento e desenvolvimento de “relações político-pedagógicas com grupos populares; sua explicação do mundo, da qual faz parte a compreensão de sua própria presença no mundo" (FREIRE, 1996, p. 42), sempre com a aguda percepção de que isso exige esforço e que "uma leitura do mundo feita a partir dos sentidos não basta a experiência” (FREIRE, 1997b, p. 21).

Freire assumiu a mesma posição já em Pedagogia do Oprimido quando observa que “nossa tarefa não é falar com as pessoas sobre nossa visão de mundo ou tentar impô-la a elas, mas dialogar com elas sobre sua visão. e nosso" (1968)., p. 55); e voltou a fazê-lo na Pedagogia da Esperança, quando sublinha que o princípio do diálogo pressupõe a confirmação da voz e da experiência dos interlocutores, de modo que no diálogo um não se reduz ao outro, mas, pelo contrário, se afirmam de modo que "a relação de conhecimento não se esgota no objeto, [mas] se estende a outro sujeito e se torna essencialmente uma relação sujeito-objeto-sujeito" (FREIRE, 1992, p. 61).

Refira-se que o aspecto quase poético com que Freire se referia ao senso comum ("saber da pura experiência criada"), aliado à afirmação da tarefa pedagógica do professor respeitando o saber do aluno, encanta o conhecimento espontâneo e um conhecimento muito comum sentido, como se autorizasse uma certa interpretação idealista e subjetivista da cultura popular e das formas de conhecer e valorizar cada pessoa. No entanto, o próprio autor, com a mesma frequência com que adverte contra o imperativo do respeito ao outro, à sua compreensão do mundo e aos seus desejos e necessidades como única forma de concretizar a educação para a liberdade, assinala que

[...] a prática docente crítica que implica o pensamento correto envolve um movimento dinâmico, dialético entre o fazer e o pensar sobre o fazer. O saber que uma prática pedagógica espontânea ou quase espontânea, "desarmada", produz sem dúvida é um saber ingênuo, um saber da experiência que carece do rigor metodológico que caracteriza a curiosidade epistemológica do sujeito. (FREIRE, 1996, p. 21).

Dessa forma, assim como a transformação da consciência ingênua transitiva em consciência crítica não é espontânea ou automática, também não é natural superar a curiosidade ingênua e constituir-se em curiosidade epistemológica. Tais dinâmicas são constantemente ameaçadas. O respeito pelo bom senso no processo de superação deve, portanto, ser acompanhado do apoio à atividade criativa do aluno e dedicação à consciência crítica, cuja superação da ingenuidade não é automática ou imediata.

Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto sem desvios idealistas na necessidade de conscientização. Insisto na sua atualização. De fato, como o aprofundamento da "prise de awareness" do mundo, dos fatos, dos acontecimentos, da consciência é uma exigência humana, essa é uma forma de colocar em prática a curiosidade epistemológica. No lugar do estranho está a consciência de um ser natural que, inacabado, sabe que está inacabado. (FREIRE, 1996, p. 28).

Ao explicar em que consiste a problematização da educação, Freire defende a importância essencial da "conscientização" e afirma que o diálogo é condição necessária para sua realização, insistindo que esse diálogo está profundamente comprometido, indissociavelmente, com a humanização dos sujeitos e com a transformação do mundo. Daí advém a ideia de que a “educação problemática” não se enquadra no “fixismo reacionário” porque aponta para um “futuro revolucionário” e por isso adquire um caráter profético e como tal “esperançoso”.

Não há idealismo nisso, embora seu argumento reconheça a humanidade, que se afirma em certa medida na perspectiva da inspiração fenomenológica e fundamentada no humanismo cristão radical, dadas as condições inerentes à manifestação do espírito. Não é de forma alguma algo que acontece espontaneamente, mas, ao contrário, como resultado de uma educação que reconhece a condição histórica do ser humano e se identifica com ele como "ser fora de si - como "projetos" - como seres que vão adiante, que eles olham para frente” (FREIRE, 1996, p. 47).

Dessa forma, assim como a transformação da consciência transitiva ingênua em consciência crítica não é espontânea ou automática, também não é natural superar a curiosidade ingênua e tornar-se curiosidade epistemológica. Tais dinâmicas são constantemente ameaçadas. O respeito pelo bom senso no processo de superação deve, portanto, ser acompanhado do apoio à atividade criativa do aluno e dedicação à consciência crítica, cuja superação da ingenuidade não é automática ou imediata.

Contra toda a força do discurso fatalista neoliberal, pragmático e reacionário, insisto sem desvios idealistas na necessidade de conscientização. Insisto na sua atualização. De fato, como aprofundar o “preço da consciência” do mundo, dos fatos, dos acontecimentos, da consciência é uma demanda humana, é uma forma de colocar em prática a curiosidade epistemológica. No lugar do estranho está a consciência do ser natural, que, inacabado, sabe que está inacabado. (FREIRE, 1996, p. 28).

Ao explicar o que constitui a problematização da educação, Freire defende a importância essencial da "conscientização" e argumenta que o diálogo é condição necessária para sua efetivação, insistindo que esse diálogo está profundamente comprometido, indissociavelmente, com a humanização dos sujeitos e com a transformação. o mundo. Daí a ideia de que a “educação problemática” não se enquadra no “fixismo reacionário” porque aponta para um “futuro revolucionário” e, portanto, adquire um caráter profético e como tal “esperançoso”.

Não há nenhum idealismo nisso, embora seu argumento reconheça uma humanidade que se afirma um tanto na perspectiva da inspiração fenomenológica e baseada em um humanismo cristão radical, dadas as condições inerentes à manifestação do espírito. Não é de forma alguma algo que acontece espontaneamente, mas, ao contrário, como resultado de uma educação que reconhece a condição histórica do homem e se identifica com ele como "seres fora de si - como "projetos" - como seres que vão adiante, que se divertem” (FREIRE, 1996, p. 47).

Compreensão Freireana de “Leitura do Mundo” e “Leitura da Palavra”

De fato, a "leitura" é frequentemente utilizada no debate pedagógico ao projetar metaforicamente um sentido a partir de observações e experiências pessoais - a leitura que se faz das coisas que se vê, dos processos que o que está acontecendo ao seu redor, o que está acontecendo com - ele se aproxima daquilo que às vezes se chama de "leitura do mundo" de que fala Freire e a toma como o equivalente a uma leitura ampliada, aberta e sempre verdadeira e legítima.

No entanto, Freire apresenta uma problematização bem diferente dessa apropriação ingênua. Ele rejeita a educação instrumental e autoritária e condena a dominação e a alienação características da educação bancária, vinculando estritamente o aprender lendo e escrevendo ao estado de cada um de nós e do coletivo para dizer qual é o seu projeto de mundo e de vida, afetando a sociedade. e transformá-lo para que seja justo e democrático. Nesse sentido, ler o mundo seria a própria percepção da vida vivida, incluindo tanto as experiências subjetivas mais íntimas quanto as relações histórico-sociais mais complexas.

Deve-se notar desde já que o tema específico da leitura, seja como procedimento cognitivo ou como inteligência do texto escrito, não se encontra exatamente na obra de Paulo Freire, cujo cerne sempre esteve na educação - originalmente, na alfabetização de adultos e dado ao poder epistemológico e político a sua argumentação nos processos formativos dos movimentos populares, na reflexão teórico-prática da ação cultural e mesmo na educação escolar.

De fato, principalmente em seus primeiros escritos, nas décadas de 1960 e 1970, "ler" e "ler", quando ocorrem, denotam sem mais delongas a atividade específica de interagir com um texto escrito. Por fim, aborda a ideia de intelecto ou a interpretação de um texto decorrente de sua leitura em sentido estrito, mas sem teorização concreta. O termo é aceito em seu sentido usual, sem qualquer esclarecimento.


No entanto, isso não significa que Freire não estabelecesse uma relação entre o ato de ler e uma percepção crítica da realidade, enfatizando as diferenças e desigualdades produzidas na história humana. Pelo contrário, enfatiza

[...] aprender a escrever e a ler como chaves com as quais o analfabeto iniciaria sua introdução no mundo da comunicação escrita. Homem [e mulher], afinal, no mundo e com o mundo. Seu papel de sujeito e não de mero e permanente objeto. A partir daí os analfabetos iniciariam a operação de mudança de suas atitudes anteriores. Ele apareceria criticamente como o criador desse mundo da cultura. Ele descobriria que tanto ele quanto o estudioso têm um estímulo para a criação e a recreação (FREIRE, 1967, p. 108).


Já na "Ação cultural de libertação" (FREIRE, 1976a), escrita em 1969, há um trecho em que a expressão "ler a realidade" e sua "releitura" aparece em um sentido próximo ao que poderia vir a ser "ler o mundo ". ". Ao tratar da semi-intransitividade, ele observa que

[...] homens e mulheres cuja consciência está neste nível são incapazes de superar sua apreensão mágica dos fatos; eles são incapazes de ler sua realidade novamente porque percebem que existem outras razões para sua miséria do que até então admitiam. Ao contrário, a experiência tem mostrado que essa releitura é possível mais rapidamente do que se pensa, embora muito tenha que ser feito entre o momento da releitura e o engajamento em uma nova forma de ação que seja coerente com ela (FREIRE, 1976a, p. 59, grifo nosso).

Em outro texto da época - "Alfabetização de adultos - uma crítica à sua visão ingênua e uma compreensão de sua visão crítica" (FREIRE, 1976b) - critica o modelo bancário de educação, em que o ensino da leitura e da escrita é desvinculado da realidade concreta que busca aprender porque o sistema cria um dominador, insiste

[...] mais do que escrever e ler que "a asa é do pássaro", os alfabetizandos precisam perceber a necessidade de um aprendizado posterior: "escrever" sua vida, "ler" sua realidade, que não será possível se não tomarem a história em suas mãos, de modo que, ao criá-la, sejam por ela criados e remodelados. (FREIRE, 1976b, p. 13, entre aspas do autor, grifos do autor).

Trata-se, sem dúvida, de um jogo argumentativo em torno da atividade de escrita e leitura, em que não se assume o ato em si, mas a consequência que dele decorre. Não adianta aprender textos apenas para reproduzi-los; o que faz sentido é

aprender a ler essa palavra escrita em que a cultura se expressa e, ao se expressar criticamente, deixa de ser uma repetição intemporal do que passou, para se temporalizar, para tomar consciência de sua temporalidade constitutiva, que é um declaração e uma promessa do que está por vir. O destino se recupera criticamente como um projeto (FREIRE, 1967, p.12).


A expressão exata "ler o mundo" só apareceria no discurso de Paulo Freire - duas vezes - em Cartas e Guiné-Bissau (FREIRE, 1977a), embora nesta obra "ler (e 'reler') a realidade", expressão com pelo menos doze ocorrências, entre aspas, para informar a intenção conotativa quando a palavra é usada.

Ao examinar a relação entre letramento e conscientização, Freire considera que existem situações de ação político-pedagógica em que “o letramento é precedido em aparente contradição pelo pós-alfabetismo”. Dando prosseguimento ao argumento, destaca que sempre considerou a “alfabetização de adultos como uma ação cultural”, sugerindo que a alfabetização deve ser vista como “um esforço de 'ler' e 'reler' a realidade no processo de sua transformação enfatiza que "o domínio dos signos da linguagem escrita mesmo na criança que se alfabetiza pressupõe uma experiência social que a precede - a experiência de 'ler' o mundo" (FREIRE, 1977a, p. 68, citações do autor, grifos nossos) Quando Freire trata do engajamento da comunidade em uma prática reflexiva motivada por um "tema gerador significativo", ele argumenta que esse movimento pode ser chamado de "pós-alfabetização", mesmo que os alunos não tenham começado adequadamente a aprender "a ler e a escrever sinais".

Nesse caso, seria uma prática de “leitura” crítica de sua realidade, aliada a alguma forma de atuação sobre ela, que poderia despertar a comunidade para aprender a ler e escrever signos linguísticos. O oposto de uma perspectiva revolucionária é que seria impossível, ou seja, estudar línguas sem aprofundar a “leitura” e a “releitura” da realidade (FREIRE, 1977a, p. 70, entre aspas do autor, grifos do autor).

O termo "pós-alfabetização" claramente tem, no contexto em que é usado, muito mais a ver com a compreensão da educação do que com a aquisição de um sistema de escrita, e muito menos com algo como ler sem texto. Nesse argumento, Freire tenta provar aos seus companheiros da Guiné-Bissau com quem trabalhou que a pressão pela alfabetização stricto sensu – ou seja, a aquisição do domínio de um sistema de escrita alfabética em uma língua que a maioria das pessoas não dominava – tendia a coincidir com uma política educativa falha, que assumiu contornos pragmáticos em que a percepção e interpretação da realidade pareceria estar condicionada por este domínio, quando na verdade deveria impor-se o contrário. Portanto, o termo “ler a realidade” aparece com mais frequência do que “ler o mundo” neste trabalho.

A educação política, a compreensão de por que o mundo é como é e por que e como vivemos onde vivemos, é condição para a superação da semi-impermanência ou da curiosidade ingênua, para um estado de autopercepção, da vida e das coisas onde aprender letras faz sentido. Caso contrário, apenas se reproduziria, ainda que em um movimento com a intenção de revolucionar os princípios da educação bancária; ou, o que também era um problema agudo e real para Freire, reforçou-se um autoritarismo voluntarista que despreza as pessoas como elas são no mundo, seu lugar e sua história.

Para Freire, o ensino da escrita-leitura, visto como um ato criativo, implica necessariamente uma "compreensão crítica da realidade" (outra forma de se referir ao termo "ler o mundo").

O conhecimento dos saberes prévios, a que os alfabetizados alcançam ao analisar sua prática em contexto social, abre a possibilidade de novos saberes: novos saberes que transcendem as fronteiras do anterior, revelam a causa dos fatos, desmistificam, ou seja, falsos interpretações do mesmo. (FREIRE, 1977a, p. 23).

De todo modo, é preciso chamar a atenção para a paulatina expansão do termo “ler” no sentido de compreender, analisar a realidade – ou o mundo – no texto de Freire. Em Pedagogia do Oprimido, “ler o mundo” não aparece, embora o termo “consciência do mundo” ocorra dezessete vezes. Aliás, o termo constante em Freire, dos primeiros aos últimos escritos, é "mundo", não "leitura" ou "análise", o que sugere que a essência do desenvolvimento da autonomia e do compromisso com a mudança está na percepção de como a história se desenvolve na vida e a vida na história por seres situados objetivamente na realidade material. Ainda em Alfabetização: Lendo o Mundo, Lendo a Palavra, livro baseado no diálogo entre Paulo Freire e Donald Macedo (FREIRE; MACEDO, 1990) - o único com o termo "ler o mundo" no título -, são dez ocorrências de "ler o mundo" e sete ocorrências de "ler" a realidade, com a palavra "ler" sempre entre aspas.

Por fim, será em conferência realizada no III Congresso de Leitura no Brasil, em 1981, que Paulo Freire passará a utilizar definitivamente o termo "ler o mundo" de forma sistemática e consistente. Na ocasião, convidada a refletir sobre a questão da leitura proposta por uma corrente pedagógica cujo objetivo era promover a leitura como movimento de crítica à ignorância e ao tradicionalismo escolar do ensino da leitura como um processo mecânico e descontextualizado, a autora recorre a uma percepção reflexiva da sua infância, designada por “leitura” do mundo, do mundinho em que me movi, e que precederia naturalmente “a leitura da palavra, que nem sempre foi, ao longo da minha escolaridade, a leitura do “ mundo das palavras” (FREIRE, 1982a, p. 9).

No texto proferido na abertura do congresso, Freire traz com intenso lirismo e sutil nostalgia as lembranças de seus primeiros anos de vida, da casa onde morou - seus quartos, corredores, sótão, terraço (onde morava a empregada de sua mãe ) - e também medo das almas perdidas e da luz fraca e elegante com que os lampiões pouco iluminavam nas ruas do Recife.

Os "textos", "palavras", "letras" desse contexto foram encarnados no canto dos pássaros - o canto dos sanhaçu, o canto do procura-os-caminhos-quem-vem, o canto do eu vi você, tordo; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventos que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; água da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, córregos. Os "textos", "palavras", "letras" desse contexto também se materializaram no assobio do vento, nas nuvens do céu, em suas cores, em seus movimentos; na cor das folhas, no formato das folhas, no perfume das flores – rosa, jasmim –, no corpo das árvores, na casca dos frutos. (FREIRE, 1982a, p. 10)

Uma comparação do que é apresentado nos três momentos mencionados (1969; 1977a; 1982a) mostra que esse pensador sempre entendeu que aprender a ler e escrever só tem sentido se servir para ampliar a compreensão crítica da realidade e agir em direção a ela , sua transformação. Nesse sentido, aprende-se (e aprende-se) a ler e a escrever como parte de uma educação que quer apoiar a “curiosidade epistemológica” dos alunos comprometidos com o processo pedagógico, sempre levando em conta seus conhecimentos prévios – reais e objetivos –, dialeticamente considerando (respeitando e ampliando) sua percepção do mundo que faz parte de sua "experiência de vida".

Ler e escrever palavras nos obriga a deixar de ser a sombra dos outros apenas quando, numa relação dialética com a “ler o mundo”, se relaciona com o que chamo de “reescrever” o mundo, ou seja, com a sua transformação. (FREIRE, 1996, p. 40, citações dos autores, grifos meus).

Freire destaca, assim, a subjetividade e a individualidade de cada pessoa como elemento fundamental no movimento em que ele se volta para sua experiência e a entende como “leitura de seu mundo” ou sua “leitura do mundo” o estado objetivo de vida no mundo, que é ao mesmo tempo especial, único e socialmente histórico. Nesse sentido, como ele mesmo afirma, faz uma espécie de "arqueologia" de sua compreensão do complexo ato de ler no decorrer de sua experiência existencial" (FREIRE, 1996, p. 12).

É por meio dessa perspectiva fortemente fenomenológica, que sugere a indissociabilidade do mundo subjetivo, do individual-social, do particular-universal - "uma unidade dialética em que se unem subjetividade e objetividade" - "que podemos escapar do erro subjetivista e da erro mecânico e conseqüentemente perceber o papel da consciência ou "dos corpos conscientes" na transformação da realidade" (FREIRE, 1976a, p. 108).

A tensão entre o sujeito do mundo e o sujeito do mundo, incorporando a História à sua história sem deixar de ser a história de cada um, está implícita no princípio do diálogo - outra tese constitutiva da pedagogia de Freire desde seus primeiros escritos. Em Pedagogia da Autonomia, livro criado com a intenção declarada de falar com o professor no chão da escola, Freire insiste que "explicar o mundo do aluno faz parte da compreensão de sua própria presença na sala de aula". mundo' e que está explícito, implícito ou oculto na 'leitura do mundo' que sempre precede a 'leitura da palavra'. Isso porque “ler o mundo revela a inteligência do mundo que se constituiu cultural e socialmente. Também revela o trabalho individual de cada sujeito no processo de assimilação da inteligência do mundo” (FREIRE, 1996, pp. 42, 63).

Dialeticamente, porém, essa forma de ser e perceber a si mesmo e ao mundo de cada um (novamente: "conhecimento da experiência feita" - senso comum, que já mencionamos na primeira parte deste artigo) não seria a consciência absoluta, mas aquela que surge o estado de ser de todos a partir deles. Por isso, “o respeito ao mundo leitor do aluno não é um jogo tático em que o educador tenta ganhar simpatia pelo aluno”, nem se confunde com “concordar com ele ou acomodá-lo e considerá-lo seu” (FREIRE, 1996 , pág. 63) . E, portanto, a atitude de ensinar pressupõe encorajamento

[...] despertar constantemente a curiosidade do aluno ao invés de "suavizá-la" ou "domesticá-la". Deve-se mostrar ao aluno que o uso ingênuo da curiosidade altera sua capacidade de encontrar e dificulta a precisão de sua descoberta. [...] É o jeito certo que o professor tenta superar o jeito mais ingênuo com um jeito diferente, mais crítico de entender o mundo com o aluno e não nele. (FREIRE, 1996, p. 63).

Uma leitura atenta dessa fala permite perceber que o esforço de ler o texto só faz sentido se for para compreender o mundo, para se compreender nele e, mais ainda, para modificá-lo na perspectiva da liberdade e da emancipação humana . Por isso, não basta uma "leitura crítica do mundo"; é preciso "ir mais longe e dizer que a leitura da palavra precede não só a leitura do mundo, mas uma certa maneira de 'escrevê-la' ou 'reescrevê-la', ou seja, transformá-la através de nossa prática consciente" (FREIRE , 1982a, p. 9).

A par da afirmação categórica da pertença ao mundo de cada indivíduo e do imperativo de o reconhecer no seu estado objetivo e de respeitar profundamente o seu modo de ser e de se autoperceber, Freire lança-se numa crítica à espontaneidade e ao autoritarismo. No segundo texto, que forma a Importância do ato de ler - resultado da palestra apresentada no XI. no congresso brasileiro de biblioteconomia e documentação realizado em João Pessoa em janeiro de 1992 e discutindo "alfabetização de adultos e bibliotecas populares", a educadora destaca que "a possibilidade libertadora não se realiza pela prática manipulativa, nem pela prática espontânea. A espontaneidade é arbitrária, isto é, irresponsável” (FREIRE, 1982b, p. 16).

É absolutamente necessário reconhecer o direito das pessoas - o aluno, o outro com quem nos relacionamos e a quem dirigimos a nossa palavra - de "dar a nossa palavra" e, portanto, de "ouvi-lo", de falar com ele e não para ela, porque “simplesmente falar com eles seria uma forma de não ouvi-los”; e para conversar com os alunos, os educadores devem

[...] eles "assumiram" a ingenuidade dos alunos para superá-la com eles. E vamos supor que a ingenuidade dos alunos exija de nós a humildade necessária para aceitar suas críticas, a fim de superarmos com ela a nossa ingenuidade. (FREIRE, 1982b, p. 17).

Freire, na mesma palestra, enfatiza o caráter político de toda educação e enfatiza a impossibilidade tanto de "uma educação neutra que se diga a serviço da humanidade, dos seres humanos em geral" quanto de "uma prática política desprovida de significado educacional". ” (1982b, p. 15). Nesse viés,

[...] tanto no caso do processo educativo quanto no caso do ato político, uma das questões fundamentais é a clareza a favor de quem e o quê, ou seja, contra quem e contra o quê, estamos fazendo educação e para o beneficiar. de quem e de quê, ou seja, contra quem e contra o que desenvolvemos atividade política. Quanto mais conquistamos essa clareza na prática, mais nos damos conta da impossibilidade de separar o inseparável: a educação da política. Assim podemos facilmente compreender que sem consciência da questão do poder não é possível sequer pensar em educação (FREIRE, 1982b, pp. 15-16, grifo nosso).

Por fim - diz a pedagoga - tomar "a alfabetização como ato de conhecimento, como ato criador e como ato político é um esforço de leitura do mundo e da palavra" (FREIRE, 1982b, p. 19).

 A aproximação que ocorre não é, portanto, a aproximação de uma simples conexão, mas a percepção de dois processos independentes que ganham sentido justamente quando um acontece para o outro e com o outro. Ler, aprender, estudar é um processo de autodescoberta, mas tal descoberta só acontece quando se leva em conta a vida vivida, de cuja experiência vital fazem parte a “curiosidade” e a “incompletude” e o “ler o mundo”. ".

Com a metodização da curiosidade, a leitura do mundo pode levar à superação da pura adivinhação para o projeto do mundo. A maior presença de ingenuidade que caracteriza a curiosidade no momento da conjectura dá lugar a uma criticalidade inquieta e mais segura que permite a separação da pura opinião ou suposição para o projeto de mundo.  (FREIRE, 2000, p. 21, grifo nosso).

Resulta da análise que aqui percebemos claramente que o binômio leitura do mundo - a leitura da palavra deve ser entendida como expressão do estado de estar no mundo, nele viver e nele pensar; essa é a razão do estudo, da investigação, do relacionamento com os produtos da cultura – ler no sentido mais verdadeiro da palavra é uma maneira de fazer isso.

Essa percepção encontra refúgio no entendimento de Ana Maria Freire, sua companheira de longa data e aluna de sua obra, quando leciona sobre "ler o mundo e ler a palavra em Paulo Freire".

Foi incorporando sentimentos, emoções, observações, intuição e razão que ele criou sua "leitura do mundo", epistemologia, teoria do conhecimento, compreensão crítica da educação, na qual ele se pronunciou lendo o contexto do mundo ditado por o "texto" que seu corpo consciente lhe disse, e ele "ouviu" e ponderou sobre ele (FREIRE, 2015, p. 293, citações do autor, grifos do autor).

Sobre o Conceito de Leitura no Pensamento Freireano

Em sua extensa obra, Paulo Freire não tem uma consideração mais específica sobre o que é a leitura - como um fenômeno específico e indireto. Geralmente foca no motivo da leitura e nos significados que a leitura pode ter na vida das pessoas e na sociedade. No entanto, há um momento particular em que parece ser anunciado. Será em Literacy: Reading the World, Reading the Word, versão traduzida de uma obra criada em diálogo com Donald Macedo e publicada originalmente em inglês em 1987 (FREIRE; MACEDO, 1990) e a única em que o termo "ler o mundo" é você encontrará no título que encontrará alguns traços do pensamento de Freire sobre a leitura.

O livro inclui um capítulo assinado exclusivamente por Donald Macedo que explora o conceito de "alfabetização"5 como "um conjunto de práticas que operam tanto para empoderar quanto para desempoderar as pessoas [...] porque servem para reproduzir formações ou funções sociais existentes". como um conjunto de práticas culturais que promovem mudanças democráticas e emancipatórias” (FREIRE; MACEDO, 1990, p. 9).

No capítulo pertinente, Donaldo Macedo6 salienta desde logo que o objetivo do ensino de uma língua padrão continua a prevalecer na maioria dos programas de alfabetização, enfatizando a aquisição de “técnicas de leitura” e de “escrita”, o que sustenta “a noção de uma ideologia que sistematicamente nega mais do que dá o sentido das experiências culturais dos grupos linguísticos subalternos, embora do ponto de vista da pedagogia crítica deva situar-se "dentro da teoria da produção cultural e como parte integrante do modo como as pessoas produzem, transformam e reproduzir o sentido” (MACEDO, 1990, p. 121).

Abordagens tradicionais de alfabetização, por estarem associadas a um método positivista e a uma postura epistemológica de suposto rigor científico e sofisticação metodológica, abstraem questões metodológicas de contextos ideológicos e ignoram a inter-relação das estruturas sociopolíticas com o ato de ler, perpetuando uma "ideologia da cultura reprodução que vê os leitores como 'objetos'", como se seus corpos conscientes estivessem absolutamente vazios e esperando para serem preenchidos pelas palavras do professor".

Em sua crítica ao que chama de abordagens da ideia de leitura (entendemos que ali se identificam objetivamente os modelos educativos), Macedo aponta quatro tendências que, embora apresentem diferenças significativas entre si, têm em comum o desconhecimento o papel da linguagem na construção das subjetividades humanas, a forma como ela valida ou rejeita as histórias e experiências de vida das pessoas se livra de fornecer um "modelo teórico para reforçar os agentes históricos com a lógica da autodeterminação individual e coletiva".

A mais tradicional, por assim dizer, é a "abordagem acadêmica da leitura", correspondendo à ideia clássica de uma escola convencional, cujo foco seria a formação de uma "pessoa letrada - perfeitamente versada nos clássicos, articulada em falar. e escrita e estava ativamente engajado na atividade intelectual'. A leitura seria uma forma de adquirir formas predeterminadas de conhecimento que se organizariam em torno do domínio das grandes obras clássicas. No entanto, por ser irrealista, na sua versão atenuada e modificada de acordo com padrões sociais mais objectivos, centra-se na aquisição de competências de leitura e descodificação, no desenvolvimento do vocabulário, representando assim uma dupla abordagem à leitura: um nível para o domínio classe, o outro para a maioria despossuída.

Segundo o autor, tal abordagem da leitura (na verdade, uma abordagem da educação, pois corresponde ao conceito de ensino e à função social da escola) é inerentemente alienante porque ignora a experiência de vida, a história e a prática. a linguagem dos alunos, em nada contribui para a apropriação da história, cultura e linguagem da classe trabalhadora.

Uma "abordagem utilitária da leitura" apresentada sob um disfarce progressista vê a alfabetização como o atendimento aos requisitos de leitura da sociedade industrial com o objetivo de produzir "leitores que atendam aos requisitos básicos de leitura da sociedade contemporânea", com ênfase na leitura. aprendizado de máquina com habilidades de leitura, formando "alfabetizados funcionais" treinados para responder às demandas de uma sociedade tecnológica. Pragmaticamente, essa abordagem se baseia em programas de leitura na forma de "pacotes" como solução para as dificuldades dos alunos na leitura de textos publicitários e educacionais, formulários, catálogos, rótulos. Se a primeira abordagem correspondesse à escola tradicional, ela refletiria uma educação produtivista-funcional, manifestada em modelos de gestão e avaliação parametrizada, evidenciada por indicadores e rankings de eficiência e produtividade (novamente, cuidado, identificamos o conceito não de leitura, mas de educação).

Uma terceira abordagem, chamada de "leitura do desenvolvimento cognitivo", valoriza a construção de significado por meio da qual os leitores se envolvem em uma interação dialética entre si e o mundo objetivo. Embora a aquisição de habilidades de leitura e escrita seja considerada importante, o núcleo central do trabalho pedagógico seria como as pessoas "constroem significados por meio de processos de resolução de problemas"; a leitura é vista como um processo intelectual através de uma série de estágios de desenvolvimento fixos, não avaliativos e universais. A compreensão do próprio texto é assim negligenciada "em favor do desenvolvimento de novas estruturas cognitivas que permitem aos alunos passar de tarefas de leitura simples para tarefas altamente complexas". Tal abordagem seria inspirada nas ideias pedagógicas e psicológicas de John Dewey e Jean Piaget.

O autor entende que tal abordagem raramente aborda questões de reprodução cultural e ignora o "capital cultural dos alunos — suas experiências de vida, sua história e sua língua". Dificilmente lhes oferece a oportunidade de “fazer uma reflexão crítica plena sobre a experiência prática e os propósitos que os motivam a organizar suas descobertas e a substituir a mera opinião dos fatos por uma compreensão cada vez mais rigorosa de seu significado”.

Por fim, a leitura romântica, carregada de certa inconsistência teórica, prima pelo voluntarismo. Querendo ser um "interacionista" e focando na construção do significado, ele vê "o significado como construído pelo leitor e não como ocorrendo na interação entre o leitor e o autor por meio do texto". Aposte na afetividade e na leitura como satisfação do ego e uma experiência prazerosa. Quer ser a antítese das pedagogias autoritárias que transformam os leitores em "objetos", mas por ser "liberal, deixa de problematizar os conflitos de classe e as desigualdades de gênero e raça", ignora a cultura dos grupos subalternos e imagina que as pessoas têm igual acesso à leitura ou que a leitura faz parte da contribuição cultural de todos.

O modelo romântico tende a reproduzir a forma de cultura de classe dominante, alheio à ingenuidade e audácia esperadas de um estudante da classe trabalhadora que é confrontado e perseguido por infindáveis ​​desvantagens, alegrias e autoafirmações simplesmente pela leitura. Ao desvincular a leitura (a educação, destacamos) das relações assimétricas de poder que estabelecem e legitimam certas abordagens de leitura, contribui objetivamente para o enfraquecimento de determinados grupos.

As quatro abordagens identificadas por Maced enquadram-se no grupo das teorias não críticas da educação, porque tomam a educação como um fenômeno "autônomo", tentam entendê-la, não levam em conta suas limitações objetivas, determinantes sociais, estrutura socioeconômica que condiciona a forma de educação. manifestação de um fenômeno educacional. A primeira equivale à pedagogia tradicional; o segundo, a um educador técnico; e os dois últimos à nova pedagogia.

Não por outro motivo, Macedo, em consonância com a análise de Freire, entende que nenhuma dessas abordagens contribui para que o aluno utilize sua própria realidade como base de sua formação ("alfabetização"), e aponta nelas o grave desvio de ignorar a poder da linguagem na constituição da cultura e do subjetivo. Assim, ele argumenta, “os educadores devem desenvolver estruturas pedagógicas radicais que proporcionem aos alunos a oportunidade de usar suas próprias realidades como fundamento da alfabetização. Isso, claro, inclui a linguagem que eles trazem para a sala de aula” (MACEDO, 1990, p. 130).

Tomando como referência o debate que Paulo Freire travou durante seu trabalho com a educação nos países africanos de língua portuguesa que acabavam de conquistar sua independência, deixaram de ser colônias portuguesas, nas quais se percebia um pernicioso antagonismo entre a língua da cultura (universal, escrita ) e a língua da cultura (local, falada), Macedo enfatiza esta

[...] é de extrema importância que a inclusão da língua dos alunos como língua principal de instrução na alfabetização seja uma prioridade máxima. Através de sua própria linguagem, eles poderão reconstruir sua própria história e cultura. A linguagem dos alunos é o único meio pelo qual eles podem desenvolver sua própria voz, o que é um pré-requisito para desenvolver um senso positivo de auto-estima. (1990, p. 148).

Especificamente no que se refere à questão linguística, Macedo reconhece a importância do conhecimento da "língua padrão dominante" e defende que sua aquisição plena possibilita o empoderamento para dialogar com diversos setores da sociedade mais ampla. No entanto, refuta a forma "negativa" de colocar a questão da linguagem do ponto de vista da opressão - a linguagem dos alunos, "desprovida" das características da língua dominante - e enfatiza que o silenciamento da voz dos oprimidos não pode ser permitido legitimando uma forma distorcida de linguagem literária: "a voz dos alunos nunca deve ser sacrificada porque é o único meio pelo qual eles fazem sentido". Assim, "uma língua subordinada como língua suprimida poderia, se falada, desafiar o domínio linguístico privilegiado da língua padrão" (MACEDO, 1990, p. 150) e deixar aos educadores a responsabilidade

[...] desmistificar o padrão dominante e os pressupostos de sua superioridade implícita e desenvolver um programa de alfabetização emancipatória moldado pela pedagogia radical [...] que criasse valores concretos como solidariedade, responsabilidade social, criatividade, disciplina . ao serviço do bem comum, vigilância e espírito crítico (MACEDO, 1990, p. 150).

Por trás dessa percepção está a própria ideia da metáfora "ler o mundo" em seu duplo aspecto: como manifestação da experiência vital (um modo de ser resultante de uma vida vivida naquele lugar e naquelas condições) e como crítica - ato reflexivo, uma dialética em que pessoas e grupos "lêem" sua realidade e a questionam para "reescrever" em um exercício de curiosidade em movimento – da curiosidade ingênua à crítica e desta à epistemologia. ” baseia-se em sua nova “leitura do mundo”.

É essa consciência – política, histórica – que desencoraja abordagens que valorizem a aquisição de habilidades mecânicas, dissociando a leitura [do texto, mas também da vida] e o intelecto de qualquer outro produto da cultura por meio de possibilidades múltiplas. contexto ideológico e histórico. Só então o desenvolvimento do leitor de uma compreensão crítica do texto e do contexto sócio-histórico ao qual o texto se relaciona torna-se um fator importante na alfabetização, e aprender a ler e escrever torna-se um "ato criativo, que implica uma compreensão crítica da realidade " (MACEDO, 1990, p. 154).

Finalmente, "ler o mundo" não é apenas um tipo de leitura entre outros (nem se aproxima de outras aplicações de leitura, como leitura de imagens, leitura não-verbal, leitura de mãos), nem deve ser confundida com leitura de palavras. . Mais precisamente, "ler o mundo" e "ler a palavra" não são simples prolongamentos semânticos um do outro, mas duas categorias distintas, metaforicamente ligadas pelo jogo linguo-argumentativo, cuja articulação dialética permite compreender por que, onde e como vivemos, quem somos e como é isso que fazemos.

E o "mundo" de que fala Freire (um dos temas mais recorrentes ao longo da obra) não pode ser resumido ou confundido com algo de que ele trata, como a geografia de um atlas ou um conceito escolar a ser aprendido - percepção que, infelizmente, parece ser comum em projetos de aprendizagem ingenuamente engajados na "aprendizagem contextualizada"; e menos ainda se limita ao "meu mundo" ou "outro mundo" (embora estes constituam uma articulação subjetividade-objetividade), típico da visão subjetivista sistematicamente refutada por Freire. "O mundo" é toda a história humana, complexa e contraditória, incluindo toda a vida e a vida de cada um.

Sim, a razão de ler um texto (como admirar objetos de arte, ouvir música, praticar contagem, projeção reflexiva ao observar um objeto) é reler (ver de novo, pegar de novo, tocar de novo, interpretar o mundo) e na a ética da existência material concreta e na confirmação objetiva da subjetividade, intervém para reescrevê-la, torná-la diferente, justa e humana. A ausência disso consiste em permanecer semi-impermanente, na repetição alienada da curiosidade ingênua como se fosse a condição natural da vida.

Ler e Estudar no Contexto Freireano

Concluímos este ensaio com a maior advertência de Paulo Freire sobre a importância do rigor – intelectual, político, ético. Isso é relevante porque esse é um tema no qual as ideias de Freire são muitas vezes distorcidas, muitas vezes por autores que se dizem freirianos.

Na já mencionada conferência sobre a importância do ato de ler (que em nossa análise deve ser entendido como um momento simbólico do surgimento da expressão "ler o mundo" e sua relação com a leitura da palavra), que posteriormente se tornou um dos os motes de sua concepção pedagógica, Freire enfatiza o risco de uma interpretação ingênua de sua argumentação, algo que seria condizente com uma "abordagem romântica da leitura", ingênua e voluntarista.

A condenação do ensino mecanicista, preocupado com o volume e a quantidade de leitura, com a transmissão passiva de informações próprias da educação bancária, não impede Freire de perceber que

[...] minha crítica à magia das palavras não significa uma atitude menos responsável em relação à necessidade de ler, sempre e com seriedade, os clássicos de uma ou outra área do conhecimento, de mergulhar nos textos, de criar uma disciplina (1982a, p. 12).

No pequeno ensaio "Reflexões sobre o Ato de Estudar", escrito no Chile como "uma introdução a uma bibliografia proposta aos participantes de um seminário nacional sobre educação e reforma agrária", conforme explica em nota de rodapé, Freire (1976c, pp. 8 -10) aponta, que o estudo é uma atitude perante o mundo que exige estudar o texto, interpretá-lo, lê-lo com curiosidade, não desistindo nas primeiras dificuldades. Estudar exige esforço, não é fácil, é um ato criativo, não repetição; requer uma abordagem crítica e sistemática e uma disciplina intelectual que não pode ser adquirida a menos que seja praticada.

Por fim, o ato de estudar,

[...] como ato curioso do sujeito diante do mundo, é expressão do modo de ser das pessoas, como seres sociais, históricos, seres que fazem, transformantes que não só sabem, mas sabem que sabem (FREIRE, 1982c, p. 34).

A atitude crítica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Uma atitude de penetração com a qual a razão de ser dos fatos é cada vez mais claramente alcançada (FREIRE, 1976c, p. 9).

Fica claro, portanto, que a visão generalizada de Freire como um educador que banaliza o esforço e o rigor é profundamente equivocada. Neste artigo, além do tema específico do significado do termo “ler o mundo” em Freire, procuramos mostrar o quanto é importante ler sistematicamente e com seriedade a obra de Freire, para superar os erros que permeiam a divulgação de sua obra. ideias nos meios educativos e na sociedade em geral.

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