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Resenha: 12 lições contra o neofascismo, de Paulo Cotias

Foto: Arte digital

APRESENTAÇÃO

Nesta obra, Paulo Cotias analisa o neofascismo como fenômeno caleidoscópico, ou seja, multifacetado, com manifestações muitas vezes silenciosas e subliminares. Daí surgem as 12 lições que motivam o título do livro e seus capítulos. 

Historiador, especialista em Docência Superior e mestre em Educação, Cotias aposta na linguagem clara e objetiva aliada a uma detalhada – e necessária  –  contextualização histórica. Logo de início, um alerta: “Cuidado com o academicismo”.

“Tratar o neofascismo com eufemismos ou outros nomes menos comprometedores – como “populismo de direita”, “extrema direita”  ou “conservadores” – é fazer seu jogo. Ele, como veremos, não pode vir à luz com esse nome. Não quer isso”.

Nas páginas seguintes, o autor segue com o dedo na ferida. Na lição 4 – “O neofascista precisa de arautos” –, afirma: “O neofascista se admira no espelho, mas é temeroso das leis, ética e civilidade, que acredita que o oprimem e podem punir. Por isso, reluta, esperneia e revolta-se se for percebido clara e publicamente como tal. É como a retirada vergonhosa de um disfarce.”

RESENHA

12 Lições Contra o Neo Fascismo de Paulo Cotias é uma obra que analisa de forma profunda e detalhada o neofascismo, um fenômeno multifacetado e muitas vezes silencioso. Com sua expertise como historiador e mestre em Educação, o autor apresenta 12 lições essenciais para compreender e combater essa ideologia perigosa. Em um estilo claro e objetivo, Cotias contextualiza historicamente o surgimento e a propagação do neofascismo, alertando para a necessidade de não utilizar eufemismos para descrevê-lo. Ao longo dos capítulos, o autor aborda temas como a necessidade de arautos, seguidores, inimigos, estética, braço armado, multiverso, fé e algoritmo para sustentar o neofascismo. Uma leitura indispensável para aqueles que desejam compreender e resistir a essa ameaça à democracia e aos direitos humanos.

Partindo do pressuposto da necessidade de conhecimento para ação, Paulo Cotias desenvolve em sua obra uma premissa fundamental e indispensável para construção de barreiras para o avanço do neofascismo. A teoria central da obra convida o leitor para o conhecimento da esfera manipuladora e problemática erradica pelos neofascistas, que, por vezes, recebem títulos de 'salvadores', 'donos da verdade', e outros que costumo dizer 'pais de família', o que os fazem se enraizar no seio da sociedade e se perpetuarem de forma silenciosa e claudicante, promovendo entre seus aliados um ritual de desordem, exclusão e prepotência, o que em síntese, é um efeito da coisa, não de sua difusão. Reconhecer os sinais que fazem o neofascismo se tornar tão presente e popular é uma forma de elaborar uma forma de impedir a contaminação de outras pessoas por meio da ignorância e falta de conhecimento de alguns.

Usando de forma figurada a comparação entre neofascismo e caleidoscópio, o autor promove, desta forma,  um paralelo entre a existência, o ato e a consequência dos movimentos e da inserção silenciosa dos ideais fascistas no seio social por meio da propagação e expansão de seus reais idealizadores e apoiadores por meio de discursos bem elaborados para ouvidos desatentos. Para o autor, derrubar um político ou candidato neofascista não impede o movimento de se propagar ou existir, é necessário assim, atentar-se para as raízes que mantém a base em sua solidificação, sendo necessário pensar em uma ação conjunta que possibilite uma ação efetiva de forma a erradicar não um sintoma, mas a causa como um todo.

Em lição 1: cuidado com o academicismo, o autor se desdobra a desvencilhar as esferas do neofascismo na história, desde os acontecimentos recentes com o uso de notícias e publicidade para desvirtuar o foco do reconhecimento da problemática, o colocando como um acontecimento distinto, não o fascismo propriamente dito. Para ilustrar a raiz e os efeitos, ele analisa de forma contextualizada o fascismo promovido por Benito Mussolini e os resultados catastróficos para os italianos, que enfrentaram a pior crise econômica da história, as greves intensas, que culminaram na acensão de Mussolini como primeiro-ministro de Vitor Emanoel III para formação do Estado Fascista. As condições atuais existentes possibilitaram o discurso de que o fenômeno atual das complicações políticas, dos discursos inflamados e dos problemas sociais fossem intitulados de qualquer outra coisa, menos fascismo, como resultado do academicismo que passou a chamar as recentes problemáticas de populismo; extrema-direita ou autoritarismo, o que fez com que houvesse uma análise menos aprofundada dos termos, levando em consideração sua 'pureza', em relação aos acontecimentos promovidos pela ideologia fascista.

Em lição 2: O fascismo tende a se unificar, o autor estuda a estrutura do fascismo, expondo que, como não há evidências de um movimento orgânico com características visíveis e palpáveis como noutros momentos da história, criou-se então a introdução de que essa ilusão política da falta de análise das problemáticas, era, senão, em um moisaco difundido em diferentes territórios, não mais unificado. O que claro, fortaleceu a ideia de acensão de um fascismo territorializado e menos fragmentado por meio da figura de um líder, responsável pela condução de uma nova hierarquia através dos discursos e da difusão de uma política mais reconhecida por meio de um poder de ação pautado em ideologias, uniformes, hinos e rituais que permitiram, ao passo, ainda que lento, reconhecer os sinais de um levantamento facista social.

Em lição 3: O neofascismo é envergonhado de si, o autor se desdobra a explicitar de forma erudita a dificuldade de se encontrar um participante do movimento de forma clara, o que claro, é resultado do seu fracasso na história, tornando assim, seus seguidores uma forma não linear entre a sociedade. A perversão da democracia liberal ocasionou na criminalização do fascismo, bem como em apologias ao movimento, o que fazem os nazifascistas não se assumirem como parte constitutiva do movimento.

Em lição 4: O neofascismo precisa de arautos, descreve que os neofascistas buscam disseminar suas ideias através de profecias autorrealizadoras e sinais que possam ser interpretados como prodígios. Eles atuam em diversos espaços, como igrejas, redes sociais, mídias de massa e através de influenciadores. Recrutam arautos intelectuais e pseudocientistas para legitimar suas ideias e buscam ocupar espaços na sociedade através de autores que abordam temas sensíveis de forma sensacionalista. A estratégia dos neofascistas é ampliar seu alcance e influência de maneira a manipular a opinião pública e se estabelecer como figuras de poder.

Em lição 5: O neofascismo precisa de seguidores, explica que o neofascismo depende de uma comunidade imaginada, em que arautos falam para um público engajado que se torna disseminador das mensagens. A retórica e a produção de verdades são essenciais para mobilizar os seguidores. Além disso, são utilizadas estratégias estéticas e de produção de conteúdo para conquistar novos seguidores. Há também a figura dos influenciadores, ideólogos e fanáticos, que atuam em diferentes níveis dentro da ideologia neofascista. Crianças são estimuladas a se tornarem arautos, enquanto a formação de uma comunidade imaginada se estende a diferentes aspectos da sociedade. O recrutamento por ressentimento é uma estratégia poderosa do neofascismo.

Em  lição 6: Democracia em desencantonos fala que para a população em geral e para o desenvolvimento econômico e social, a busca por um equilíbrio entre investimentos, gastos públicos e arrecadação é fundamental. A substituição da cidadania pelo consumo e do emprego sólido por arranjos precarizados tem levado a um cenário de endividamento e fragilização da economia e da sociedade. As crises econômicas desencadeiam problemas sistêmicos que necessitam de medidas cuidadosas e equilibradas, que levem em consideração não apenas os interesses do grande capital, mas também os da população e o desenvolvimento nacional.

Em lição 7: O neofascismo precisa de inimigos, discute a ascensão de regimes autoritários e totalitários no século XX, como o nazifascismo e o regime stalinista na União Soviética. Também aborda a crise do Estado liberal e do capitalismo na década de 1920, culminando na Grande Depressão de 1929. Após a Segunda Guerra Mundial, surge a Guerra Fria entre o socialismo de Estado e as democracias liberais, consolidando o Estado de Bem-Estar Social. No entanto, a introdução do neoliberalismo provocou mudanças significativas, como a desindustrialização e a precarização do emprego. O surgimento do neofascismo contemporâneo é abordado, mostrando como a corrupção foi utilizada como um inimigo útil para legitimar a ascensão ao poder, especialmente no Brasil. As estratégias políticas e as consequências desses movimentos são discutidas, ressaltando a importância da conscientização e resistência democrática para evitar retrocessos autoritários.

Em lição 8: O neofascismo precisa de uma estéticaesclarece que todo movimento que visa longevidade necessita de uma estética, que diferencia o eu do outro e estabelece hierarquias e pertencimento. A estética opera no campo simbólico, modulando pensar, sentir e agir. Nas redes sociais, a busca por reconhecimento é ainda mais intensa, levando à adesão estética mesmo sem conhecimento das causas. Neofascistas modernos buscam capturar estéticas já existentes para se identificar e ganhar poder. No Brasil, as cores nacionais e a camisa da seleção de futebol são usadas como símbolos. A relação entre política e futebol no país torna essa apropriação mais fácil. Com estética, simbologia e uniformes estabelecidos, o neofascismo precisa formar um braço armado.


Foto: detalhes da diagramação / Sophia editora / reprodução


Em lição 9: O neofascismo precisa de um braço armado, esclarece e discute  que em 1849, Luis Bonaparte fundou a sociedade 10 de Dezembro para alcançar o poder na França, usando de violência para impor seus desejos absolutistas. Na Itália, Mussolini emergiu em um cenário de ascensão dos partidos populares, contando com apoio de grandes empresários, latifundiários, intelectuais nacionalistas e militares desempregados. No Brasil, os integralistas não conseguiram chegar ao poder devido ao regime ditatorial de Vargas. O neofascismo busca se fortalecer atrelando-se ao poder do Estado e armando a população. O desarmamento é atacado para beneficiar grileiros, madeireiros e garimpeiros, potenciais aliados neofascistas. A concessão de armas pode servir como reserva armada para agir contra instituições democráticas, como visto nos Estados Unidos. Para posicionar militantes nas ruas a favor do neofascismo, é necessário mobilizar diversos segmentos e colocá-los como vanguarda.

Em lição 10: O neofascismo precisa de um multiverso, narra que a dificuldade do neofascismo em um contexto de realidade heterogênea é o uso de manipulação e criação de diferentes narrativas para se manter no poder. Ao criar realidades paralelas em que fatos e valores são distorcidos, o neofascismo tenta controlar e influenciar a população. Por meio de manipulação da informação e negação da ciência, busca manter seu apoio e justificar suas ações, mesmo que sejam prejudiciais à sociedade. Essas práticas criam universos paralelos em que o líder neofascista é visto como uma figura divina ou superior, em que a realidade é distorcida e onde oposições e críticas são desconsideradas. Para perpetuar estas realidades paralelas, o neofascismo depende da fé cega de seus seguidores.

Em lição 11: O neofascismo precisa de uma fé, em resumo, o desenvolvimento de sistemas de crenças e fé tem sido fundamental para a construção de comunidades cooperativas ao longo da história da humanidade. A religião desempenhou um papel central na organização social e na compreensão do mundo, possibilitando ações e controle sobre aspectos da vida que estavam fora do alcance humano. No entanto, com o avanço da ciência e da tecnologia, novas formas de compreender e agir sobre o mundo surgiram, desafiando as narrativas tradicionais de fé. O neofascismo brasileiro atual busca capturar a noção de Deus e a liberdade, adaptando-as de forma a unir diferentes grupos em torno de uma ideologia política específica. A coexistência de sistemas de crenças, tanto tradicionais quanto contemporâneos, demonstra a importância da fé na sociedade atual.

Em lição 12: O neofascismo precisa de um algoritmo, esclarece que a introdução de termos do mundo digital no Instagram e algoritmos refletem processos presentes no nosso organismo. Os algoritmos, como conjunto de regras sistemáticas, são utilizados para reforçar gostos, ideias e tendências, levando todos a agir de forma convergente. Esses algoritmos são produzidos por grupos especializados, como os "gabinetes do ódio", e têm como objetivo controlar a liberdade de expressão, testar os limites da democracia, se apresentar como antissistema e cultuar a violência para impor sua ideologia neofascista.

O livro '12 Lições Contra o Neofascismo', de Paulo Cotias, é uma leitura essencial para compreender as nuances e estratégias do neofascismo na contemporaneidade. O autor apresenta de forma clara e cuidadosa cada uma das lições, abordando desde a manipulação da informação até a necessidade de um braço armado para fortalecer o movimento neofascista. A análise profunda e detalhada de Cotias sobre a estética, os seguidores, a fé e o algoritmo necessários para sustentar o neofascismo nos faz refletir sobre os perigos e desafios enfrentados pela democracia atualmente. Com uma linguagem acessível e exemplos históricos e contemporâneos, o autor nos convida a despertar para a importância da resistência democrática e da conscientização diante do avanço de ideologias autoritárias. Em tempos de polarização política e manipulação da informação, '12 Lições Contra o Neofascismo' se mostra como uma obra atual e relevante para todos que buscam compreender e combater o neofascismo em nosso mundo.

[RESENHA #1014] O showman: Os bastidores da guerra que abalou o mundo e forjou a liderança de Volodymyr Zelensky, de Simon Shuster

Foto: Arte digital

APRESENTAÇÃO

Das coxias dos programas de auditório na Ucrânia às trincheiras da guerra contra a Rússia, Simon Shuster, jornalista correspondente da revista Time, retrata a vida e a liderança em tempos de guerra do presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Baseado em quatro anos de reportagem, extensivas viagens ao front com o presidente e dezenas de entrevistas com ele, a esposa, os amigos e inimigos, os conselheiros, os ministros e os comandantes militares, O showman conta a história intimista e reveladora da evolução de um comediante a símbolo de resiliência, e de como ele conseguiu o apoio de tantos Estados democráticos à sua causa.

Realista sobre as falhas iniciais de Zelensky em garantir a paz e sobre sua disposição para silenciar dissidências políticas, o livro faz um retrato complexo de um homem lutando para romper o que considera um ciclo histórico de opressão, iniciado muitas gerações antes da sua. Mesmo com o avanço da guerra, Zelensky não deixa de lado a sua visão para o futuro do combate e, por meio de suas ações, cria estratégias surpreendentes para conter os russos e manter o Ocidente ao seu lado.

Como reportagem, O showman oferece a perspectiva essencial de testemunha ocular da história sobre um dos principais conflitos que definem o nosso tempo. Como estudo de liderança e determinação do ser humano, é um livro atemporal e universal.


RESENHA


Foto: Arte digital

Nove meses após a invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia em 2022, o correspondente da revista Time, Simon Shuster, foi convidado a entrar no comboio presidencial, onde poucos jornalistas haviam estado antes. Este acesso não implica que “Showman” seja uma biografia, embora fale abertamente da ascensão de Zelensky ao poder, o início da guerra, os problemas da Ucrânia contra a Rússia e as divergências políticas. Shuster fornece uma visão única dos bastidores da liderança de um país em guerra, com foco em Zelenskyy, que passou de artista satírico a presidente durante um período tumultuado em sua nação. O livro equilibra respeito e simpatia por esse homem corajoso e empático, enfrentando enormes desafios para proteger seu país, com uma visão crítica necessária a qualquer líder com tamanho poder e responsabilidade, que inevitavelmente cometerá erros de consequências duradouras.


A biografia do Showman é mais detalhada e profunda do que a maioria dos jornalistas conseguem obter dos políticos. Shuster é um biógrafo honesto e experiente, nascido em Moscou e criado nos EUA. Ele foi o primeiro repórter estrangeiro a chegar à Crimeia durante a tomada de Putin em 2014 e passou meses na equipe presidencial de Zelenskiy após sua eleição.


Apesar de seu relacionamento próximo com Zelenskiy, Shuster mantém sua integridade jornalística, escrevendo sobre os desafios e contradições do presidente. Ele destaca a coragem de Zelenskiy em enfrentar a invasão russa e sua determinação em manter a Ucrânia independente. No entanto, a posição política de Zelenskiy é desafiada pela crescente influência de Putin e pela falta de apoio dos EUA.


Enquanto Zelenskiy continua sua luta pela soberania ucraniana, a narrativa da biografia destaca sua busca por paz e seu desejo de negociar com Putin, mesmo após as atrocidades cometidas pelas forças russas. No entanto, a realidade brutal da guerra sugere que a paz será difícil de alcançar e que a Rússia continuará a representar uma ameaça para a Ucrânia.


Apesar dos desafios e sacrifícios, Zelenskiy permanece determinado em seu objetivo de livrar a Ucrânia da influência russa. Sua coragem e liderança são elogiadas, mas o preço da guerra tem sido alto. Enquanto a União Europeia e a OTAN podem oferecer alguma estabilidade futura, a batalha pela independência continuará a ser árdua e incerta.


O livro "O Showman: Os bastidores da guerra que abalou o mundo e forjou a liderança de Volodymyr Zelensky" de Simon Shuster é uma leitura poderosa e envolvente que nos leva para dentro dos bastidores de um dos momentos mais cruciais da história contemporânea.


A narrativa do livro é instigante e muito bem construída, conseguindo capturar a complexidade dos eventos que levaram à ascensão de Volodymyr Zelensky ao cargo de presidente da Ucrânia. A partir de uma abordagem jornalística minuciosa, Shuster nos apresenta não apenas os fatos, mas também os personagens envolvidos e as nuances políticas e sociais que moldaram esse cenário.


A capacidade do autor de contextualizar os eventos dentro de um panorama mais amplo, abordando a geopolítica e as relações internacionais, enriquece ainda mais a leitura e nos permite compreender a magnitude do impacto que a guerra teve não apenas na Ucrânia, mas em todo o mundo.


Além disso, a escrita de Simon Shuster é fluida e envolvente, tornando a leitura do livro uma experiência realmente cativante. A pesquisa detalhada e a profundidade com a qual ele aborda os temas fazem com que "O Showman" se destaque como uma obra de grande relevância para quem deseja entender melhor os desdobramentos da guerra na Ucrânia e o papel desempenhado por Zelensky.


Em suma, "O Showman: Os bastidores da guerra que abalou o mundo e forjou a liderança de Volodymyr Zelensky" é um livro essencial para aqueles interessados em política internacional, jornalismo investigativo e história contemporânea. Uma leitura que impacta, provoca reflexões e nos faz questionar sobre os desafios da liderança em tempos de crise. Recomendo fortemente a todos que buscam uma leitura instigante e esclarecedora.


[RESENHA #945] Gandhi e Churcill: a rivalidade épica que destruiu um império e forjou nossa era, de Arthur Herman

Nessa obra fascinante, finalista do Prêmio Pulitzer de Não Ficção, o historiador Arthur Herman constrói, com detalhes, uma biografia dupla de dois dos maiores líderes do século XX: Mahatma Gandhi e Winston Churchill. Gandhi e Churchill conta a história de duas importantes figuras políticas do século XX que até hoje impactam nossa era. Nascidos em mundos distintos - o primeiro em um lar religioso no interior da Índia, o segundo em uma família aristocrática britânica -, tiveram suas vidas e carreiras entrelaçadas ao protagonizar quarenta anos de rivalidade que selaram o destino da Índia e do Império Britânico.Durante sua longa carreira, Winston Churchill fez o necessário para assegurar que a Índia permanecesse sob o domínio britânico. Chegou a redesenhar todo o mapa do Oriente Médio e até pôr em risco a aliança com os Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial. Mahatma Gandhi, ao contrário, dedicou a vida à libertação de seu país, desafiou a morte e a prisão e criou um movimento político totalmente novo: satyagraha, ou desobediência civil. Suas campanhas por não violência - em especial sua famosa Marcha do Sal - seriam um ensaio e um exemplo não apenas para a independência da Índia, mas para os movimentos por direitos civis nos Estados Unidos e as lutas por liberdade ao redor do mundo.A partir de uma meticulosa pesquisa, Arthur Herman traz uma narrativa histórica ampla e vigorosa sobre império e insurreição, guerra e intrigas políticas, e conta com um fascinante elenco de apoio, como o general Kitchener, Rabindranath Tagore, Franklin Roosevelt, lorde Mountbatten e Muhammad Ali Jinnah, o fundador do Paquistão.Essa impressionante biografia desconstrói as lendas e os mitos criados sobre esses grandes personagens, expondo seus pontos fortes e suas fraquezas. Além disso, é uma brilhante parábola sobre dois homens poderosos e carismáticos que sempre foram assombrados pelo fracasso pessoal, e que, ao fim da vida, tiveram seus maiores triunfos ofuscados pela perda daquilo que mais estimavam.

RESENHA

Cada um dos mencionados indivíduos desempenhou um papel significativo na política durante o fim do período vitoriano e continuou a ser líder até meados do século XX. Cada um deles tinha uma visão marcante para seu país, que inicialmente prevaleceu de maneira impressionante, mas eventualmente entrou em conflito com as novas realidades modernas. Mohandas Gandhi (1869-1948), nascido em uma família hindu rica na província ocidental de Gujarati, recebeu educação no sistema educacional inglês com o objetivo de se tornar advogado. Ele passou algum tempo em Londres para seus estudos. Sua primeira experiência de discriminação racial aconteceu na África do Sul, onde lutou pela libertação dos trabalhadores contratados. Winston Churchill (1874-1965), filho de um aristocrata que ocupou brevemente o cargo de secretário de Estado da Índia, herdou a crença inabalável de seu pai, Randolph, na missão imperial britânica no subcontinente. Embora Gandhi e Churchill inicialmente tenham aderido à ideia de império como "uma força moral, uma instituição de ordem e civilização", a visão de Gandhi passou por uma mudança drástica. Gradualmente, ele rejeitou a Grã-Bretanha por sua opressão criminosa e tirania, e desenvolveu um novo credo espiritual a partir de suas profundas leituras filosóficas, incluindo Tolstoi, Ruskin e o Bhagavad Gita. Churchill se opunha ao tipo de "fanatismo" religioso de Gandhi, acreditando que isso ameaçava engolir o mundo civilizado cristão na escuridão do paganismo. Quando Gandhi retornou à Índia e entrou na política nacional, ele desenvolveu sua crença na ahimsa (não-violência) e adotou métodos de satyagraha (resistência passiva) para desafiar as políticas paternalistas e restritivas do Raj. Churchill sempre se opôs a ele, rejeitando categoricamente, por exemplo, a defesa do status de domínio para a Índia feita pelo Lorde Irwin em 1929. O retrato feito por Herman de cada homem transmite sua visão de mundo, moldada pela classe social, história e educação. Ambos se mostraram grandiosos, mas também com falhas, de maneiras diversas. Escrito de forma magistral pelo renomado autor Arthur Herman, este livro nos transporta para um período conturbado da história mundial, onde o domínio britânico sobre a Índia estava no auge e as ideias de liberdade e independência começavam a se espalhar.

Herman mergulha profundamente na personalidade e nos valores de Gandhi e Churchill, revelando suas diferenças marcantes. Enquanto Gandhi se destacava por sua filosofia de resistência pacífica e sua busca incansável pela independência indiana, Churchill, por outro lado, defendia a supremacia britânica e a manutenção do império a todo custo. Essas duas visões opostas colidem em uma rivalidade épica, que mudaria o curso da história e deixaria um legado duradouro.

O autor conduz o leitor através de eventos cruciais, como a Marcha do Sal, a Segunda Guerra Mundial e a luta pela independência indiana, evidenciando como as ações de Gandhi e Churchill se entrelaçaram ao longo desses momentos cruciais. Além disso, Herman destaca também os dilemas enfrentados por ambos os líderes em suas vidas pessoais, expondo suas fraquezas e contradições.

Uma das grandes conquistas deste livro é revelar os bastidores dessa rivalidade, proporcionando uma perspectiva única dos desafios e obstáculos enfrentados por Gandhi e Churchill em suas incessantes batalhas políticas. Herman mergulha nas controvérsias e argumentos fervorosos que se desenrolaram durante os anos de confronto, permitindo que o leitor compreenda todas as nuances desse embate histórico.

Além disso, "Gandhi & Churchill" também aborda como essa rivalidade não apenas afetou o império britânico, mas também moldou a nossa era. A luta pela independência indiana e o desmantelamento do império tiveram impactos significativos na política internacional e nas relações globais, abrindo caminho para uma nova ordem mundial.

Com uma narrativa envolvente e uma pesquisa meticulosa, Arthur Herman nos presenteia com um retrato vívido e detalhado da rivalidade entre Gandhi e Churchill. Este livro é uma leitura obrigatória não apenas para os apaixonados por história, mas também para aqueles interessados em compreender como a luta pelo poder e ideais opostos podem se chocar e definir o curso da humanidade.

[RESENHA #944] A Construção Social da Subcidadania: Para Uma Sociologia Política da Modernidade Periférica, de Jessé Souza


Pretende ser uma alternativa teórica às questões centrais da reflexão sobre a singularidade de sociedades periféricas como a brasileira, abordando os temas da subcidadania, da naturalização da desigualdade e da singularidade do processo de modernização entre nós. O objetivo é elaborar uma concepção teórica alternativa, tanto em relação às abordagens personalistas, patrimonialistas e hibridistas destes fenômenos, quanto em relação às percepções conjunturais e pragmáticas que perdem o vínculo com qualquer realidade mais ampla e totalizadora.

RESENHA

A proposta do livro é criticar a centralidade de categorias como personalismo, familismo e patrimonialismo na compreensão das "mazelas" sociais em países periféricos como o Brasil. O autor chama essas categorias de tradição "culturalista essencialista". O objetivo é construir um "paradigma alternativo" de interpretação que conserve o acesso a realidades culturais e simbólicas. O desafio é demonstrar como a desigualdade social em países periféricos, como o Brasil, é resultado de um processo de modernização, não de uma suposta herança pré-moderna e personalista. A desigualdade e sua naturalização na vida cotidiana são modernas, pois estão vinculadas à importação bem-sucedida de valores e instituições modernas. Ou seja, a desigualdade social no Brasil não decorre da falta de modernidade, como algumas teses modernizantes sugerem, mas sim da conflitualidade moderna da sociedade brasileira periférica. Para compreender essa "modernidade periférica", é necessário abandonar as polarizações do tipo "pré-moderno/moderno" e desenvolver uma visão alternativa que critique a própria modernidade ocidental.

Souza dedica uma parte do livro à reconstrução da ideologia espontânea do capitalismo, utilizando a síntese de dois importantes teóricos contemporâneos: Charles Taylor e Pierre Bourdieu. Taylor enfatiza a transição para a modernidade, que redefine a hierarquia social e coloca as esferas práticas do trabalho e da família como atividades superiores e mais importantes. Ele também destaca a oposição entre a concepção instrumental e pontual do self e a configuração expressiva do mesmo. Por sua vez, Bourdieu critica a "naturalização" das relações sociais de dominação através da teoria do habitus, que destaca o caráter irrefletido dos diferentes comportamentos sociais classificatórios. Bourdieu é fundamental nas análises interessadas em desvelar e reconstruir realidades petrificadas e naturalizadas.

Esse aspecto revela-se ainda mais essencial quando consideramos a importância atribuída por Bourdieu ao mascaramento das condições econômicas inerentes à dominação de classe. Em outras palavras, a dominação simbólica - e, nesse sentido, a própria ideologia da igualdade que serve de base para o consenso social e político ocidental - obscurece as relações de desigualdade.

Na segunda parte do livro, intitulada "A constituição da modernidade periférica", Souza analisa o padrão de modernização daquilo que ele chama de "nova periferia" - onde as práticas modernas são anteriores às ideias modernas - e esses traços gerais são investigados através de uma abordagem inovadora que envolve a desconstrução e reconstrução das obras clássicas da interpretação da formação social brasileira, como as de Gilberto Freyre, Luiz Werneck Vianna, Florestan Fernandes e Maria Sylvia de Carvalho Franco.

Nessa empreitada, a obra de Gilberto Freyre ganha destaque. Na verdade, como o próprio autor destaca, é uma maneira de "usar Freyre contra Freyre", ou seja, construir a tese da singularidade da formação social brasileira utilizando os aspectos descritivos presentes na obra de Freyre, sem compartilhar de suas generalizações ideológicas. Essa abordagem se justifica pelo fato de Souza considerar Freyre um dos principais intérpretes do século XIX, que foi um período estratégico para a modernização periférica brasileira. Além disso, a instituição da escravidão assume um papel central na obra de Freyre, ao contrário da maioria dos estudiosos da formação do Brasil: "Se não estou sendo injusto, o tema da escravidão só atinge este status na obra de Joaquim Nabuco e do próprio Gilberto Freyre" (p. 103).

É nesse sentido que Souza identifica em Freyre uma "versão reprimida" do cerne da singularidade da escravidão brasileira, resgatando uma interpretação específica do patriarcalismo a partir da conhecida ideologia do sincretismo cultural, que por sua vez é relacionada ao conflito "sadomasoquista" inerente à relação social da escravidão:

No caso brasileiro, estamos lidando com um conceito extremo de sociedade, onde a ausência de instituições intermediárias faz do elemento familiar seu principal componente. [...] É justamente como uma sociedade constitutiva e estruturalmente sadomasoquista, em busca de uma patologia social específica, onde a dor do outro, o não reconhecimento da alteridade e a perversão do prazer se tornam os objetivos máximos das relações interpessoais, que Gilberto Freyre interpreta a essência do patriarcalismo brasileiro (p. 115).

Souza também passa por uma obra clássica de Maria Sylvia de Carvalho Franco, "Homens livres na ordem escravocrata", com o objetivo de estabelecer os vínculos entre escravos - função produtiva essencial - e dependentes livres - franjas da atividade econômica - e melhor caracterizar a "ralé" que cresceu e vagou ao longo de quatro séculos: homens dispensáveis, desvinculados dos processos essenciais à sociedade. Da mesma forma, o autor analisa os livros de Florestan Fernandes sobre "A revolução burguesa no Brasil" e de Luiz Werneck Vianna sobre "Liberalismo e sindicato no Brasil", sempre com o objetivo de compreender melhor a singular construção de um capitalismo periférico marcado por processos sociais que poderíamos qualificar como "modernização conservadora" ou "revolução passiva", segundo Antonio Gramsci, desde a Independência nacional até o período pós-1930 e a hegemonia ideológico-política do "organicismo estatal".

Na terceira e última parte do livro, intitulada "A construção social da subcidadania", encontramos um esforço final para tornar mais precisa a compreensão da especificidade do processo de modernização capitalista no Brasil, cuja forma predominante repousa sobre a constituição de uma espécie de "ralé" estrutural naturalizada pela reprodução característica de nossa desigualdade periférica. Souza busca lançar novas luzes sobre a formação de um padrão especificamente periférico de cidadania e subcidadania ao longo do período de emergência e estruturação de nossa vida republicana.

Para isso, o autor dialoga criticamente com a obra de Florestan Fernandes, "A integração do negro na sociedade de classes", no que diz respeito à problemática inserção do liberto nas novas condições marcadas pela modernização capitalista. Souza procura deslocar o argumento do processo de marginalização permanente de grupos sociais, baseado no preconceito de cor, para a formação de um "habitus precário" estruturado sobre concepções morais e políticas. O conceito de "habitus precário", construído a partir da combinação de ideias de Bourdieu e Taylor, implica um tipo de padrão comportamental que afasta indivíduos e grupos dos padrões utilitários do universo mercantil, tornando inviável um reconhecimento social moderno do significado de ser "produtivo" na sociedade capitalista, tanto na central quanto na periférica.

É possível perceber que o livro de Jessé Souza tem potencial para interessar seus leitores, tanto acadêmicos como não acadêmicos. Isso se deve ao fato de que se trata de uma interpretação vigorosa e madura das contradições brasileiras. No entanto, como ocorre com qualquer leitura de qualidade, estimula o desejo de discutir e argumentar.

Nesse sentido, gostaria de me distanciar de uma passagem que se encontra no final da obra, na qual se afirma que todas as ênfases deslocadas passam ao lado da contradição principal da sociedade brasileira. A meu ver, a contradição principal não está tanto na constituição de uma "ralé" de inadaptados às demandas produtivas, mas sim na instrumentalização estrutural do processo de marginalização social para expandir e reproduzir as bases econômicas do capitalismo brasileiro.

Dito de outra forma, a pobreza desempenha um papel funcional tanto no regime de acumulação quanto no modo de organização da vida política no Brasil, com seus padrões de cidadania e "subcidadania". Portanto, as classes subalternas brasileiras, dada suas características históricas fundamentais, não são de forma alguma inadaptadas à produção moderna.

Ao contrário do que o autor sugere, a "ralé" mencionada representa um dos aspectos essenciais da reprodução do padrão de acumulação capitalista periférico, que se baseia na relação entre o desenvolvimento capitalista e a superexploração do trabalho. Portanto, a discussão sobre o caráter singular da nossa modernidade não pode prescindir da teoria marxista da dependência, que argumenta que o subdesenvolvimento é produto da evolução capitalista periférica.

Vale mencionar que as ideias de Ruy Mauro Marini e Francisco de Oliveira, assim como as de Jessé Souza, questionam as polarizações do tipo "pré-moderno/moderno" na análise da singularidade da nossa formação social. Embora faça essa ressalva crítica, é importante destacar os méritos do livro, em particular o esforço profícuo de complexificar os marcos teóricos interpretativos acerca da sociedade brasileira.

Jessé SOUZA. A construção social da subcidadania: para uma sociologia política da modernidade periférica. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2003. 212 páginas.


[RESENHA #943] A anatomia do fascismo, de Roberto O. Paxton

APRESENTAÇÃO: O autor demonstra que, para compreendermos o fascismo, temos que examiná-lo em ação - levando em conta o que ele fez, e não apenas o que ele dizia ser. Ele explora as falsidades e as características em comum do fascismo; a base social e política que permitiu que ele prosperasse; seus líderes e suas lutas internas; as diferentes formas pelas quais ele se manifestou em diferentes países - França, Grã-Bretanha, os Países Baixos, o Leste Europeu e até mesmo na América Latina, como também na Itália e na Alemanha; de que forma os fascistas encararam o Holocausto e, por fim, se o fascismo ainda seria possível nos dias de hoje.

RESENHA

O livro "A Anatomia do Fascismo", escrito por Robert O. Paxton, apresenta aos historiadores da história política e intelectual um argumento crucial sobre o papel das ideias nos movimentos políticos. Embora reconheça a importância das ideias por trás do fascismo para entender suas origens e estágios iniciais, Paxton defende que o que os fascistas fizeram uma vez no poder é igualmente, se não mais, relevante para compreender e diagnosticar o fascismo como um movimento político com consequências extraordinárias.

Aceitar esse argumento implica que os historiadores das ideias talvez tenham que reduzir algumas de suas principais abordagens. Embora seja poderoso abordar a história política, social e cultural através do estudo das ideias, isso automaticamente implica que as ideias podem revelar e explicar como e por que as coisas aconteceram de determinada maneira. Novamente, Paxton não nega essa abordagem, mas sugere que o papel da história intelectual não pode ser central ao analisar o fascismo, pois muitas vezes as ideias se transformam ou desaparecem completamente quando os fascistas assumem o poder. Portanto, é necessário compreender como pode haver uma desconexão entre ações e ideias, assim como a causalidade, e como as manipulações retóricas frequentemente representam estratégias políticas conscientes ou subconscientes como as verdadeiras fontes de descontentamento.

Um exemplo que Paxton explora é a postura antiestabelecimento e antipolítica dos partidos fascistas em seus estágios iniciais. Desprezar todas as instituições do país e afirmar estar "acima da política" eram características comuns tanto no início do fascismo alemão quanto no italiano. Os nazistas, em particular, eram habilidosos na criação de organizações sociais alternativas para todas as funções possíveis, a fim de afastar os alemães de lealdades tradicionais e ligá-los emocionalmente ao partido. Segundo Paxton, fingir ser "antipolítico" muitas vezes era eficaz entre pessoas cuja principal motivação política era o desprezo pela política. Em situações em que os partidos existentes estavam limitados a fronteiras de classe ou religiosas, como partidos marxistas, pequenos proprietários ou cristãos, os fascistas podiam apelar prometendo unir as pessoas em vez de dividi-las. No entanto, essa característica não era exclusiva dos fascistas, que se saíram particularmente bem em nações que enfrentavam sérias crises de legitimidade. Na Alemanha, por exemplo, todos os partidos antissistema uniram-se para culpar a República de Weimar por seu fracasso em lidar com qualquer uma das crises. Ao fazer comparações entre os eleitores de Trump e os apoiadores de Sanders, é importante reconhecer essa limitação ao explorar esse aspecto do fascismo para buscar uma alma "essencial".

Uma vez no poder, os fascistas tendem a rejeitar em grande parte as discussões antiestablishment (designa um indivíduo, grupo ou ideia que é contra as instituições oficiais). Embora realizem ações drásticas e revolucionárias com o aparato estatal, como o Holocausto, que pode ser considerado uma forma de "mal radical" de acordo com Arendt, eles geralmente mantêm as estruturas existentes do Estado e tentam controlá-las. Isso pode ser feito substituindo-as por legalistas ou criando estruturas partidárias paralelas que desempenham funções semelhantes, permitindo a existência de uma burocracia pública mais tradicional. Na Itália, Mussolini fez poucas alterações em certos pontos sensíveis (como a Igreja Católica), o que levou à marginalização ou descarte de alguns de seus seguidores mais puritanos. Em termos de transformação do Estado, os regimes fascistas fizeram algumas mudanças significativas, mas deixaram a distribuição de propriedades e a hierarquia econômica e social praticamente intactas, diferindo assim da noção clássica de revolução desde 1789.

O mesmo padrão é observado na retórica econômica fascista inicial em comparação com as políticas adotadas uma vez no poder. Embora os fascistas tenham adotado uma retórica antiburguesa e até anticapitalista em seus primeiros dias de organização (especialmente na Alemanha, onde havia uma forte dose de antissemitismo), essas discussões não tiveram um impacto significativo nos sistemas econômicos quando os fascistas assumiram o poder. De fato, como afirma Paxton, "na prática, descobriu-se que o anticapitalismo dos fascistas era altamente seletivo... em nenhum aspecto as propostas iniciais do fascismo diferiam mais do que o que os regimes fascistas realmente fizeram em termos de política econômica". No entanto, os fascistas não eram simplesmente marionetes do capital, pois viam a economia e seus capitalistas como um meio para alcançar um objetivo maior. "A política econômica fascista se desenvolvia com base em prioridades políticas, não na lógica econômica". Isso fornece uma compreensão clara e convincente da relação entre fascismo e capitalismo. Embora eu acredite que o fascismo seja uma crise resultante do capitalismo, isso não significa que tenha sido apenas uma criação do capital ou um resultado inevitável. Na verdade, os fascistas priorizaram muitas coisas além dos resultados financeiros, como a conquista territorial, mas se mostraram muito mais consistentes em sua postura anti-socialista e anti-igualitária do que a retórica inicial sugeria.

O termo "fascismo" surgiu em 1919 com Mussolini e desde então tem sido frequentemente aplicado de forma generalizada a diversos grupos políticos à direita da pessoa que o utiliza. Paxton, um historiador, busca resgatar o significado do termo, reconhecendo que uma definição restrita é impossível. Em sua busca por compreensão, Paxton examina como uma variedade de movimentos fascistas conquistaram seguidores, estabeleceram alianças e exerceram o poder. Embora existam variações ao longo do tempo e do espaço, ele identifica características que distinguem o fascismo de outros regimes autoritários. Os fascistas são marcados por um estilo de comportamento político que enfatiza queixas históricas, culto à liderança, confiança em movimentos de massa de militantes nacionais, repressão de liberdades democráticas e uso de violência como ferramenta política. O livro "Vichy France", de Paxton, se tornou referência na área, apesar de sua tese controversa de que o regime de Vichy não foi apenas imposto pelos nazistas, mas tinha raízes internas. Com base em décadas de pesquisa e ensino, "A Anatomia do Fascismo" provavelmente será igualmente confiável, fornecendo um ensaio bibliográfico aprofundado que guiará acadêmicos e estudantes de pós-graduação nos próximos anos.

O valor deste livro vai além da compreensão histórica; ele é fundamental para qualquer pessoa preocupada com a sobreposição entre os movimentos contemporâneos de extrema direita e os fascismos clássicos. Paxton é refrescante porque não é excessivamente historicista e, ao mesmo tempo, busca definir conceitos de forma útil. Para mim, como historiador intelectual, o mais instigante é como Paxton interage com as ideias do fascismo, sem presumir que são a única ou mesmo a principal fonte para entender o fascismo. As ideias políticas são ferramentas políticas e, na maioria das vezes, podem ser adotadas ou abandonadas quando não são mais úteis. Que ideia simples, focar tanto ou mais no que os fascistas realmente fazem, ou seja, como chegaram a desempenhar o papel máximo em nossa imaginação moderna como o mal absoluto.

Essa simples percepção se torna extremamente relevante para a direita contemporânea ao considerarmos a grande desconexão entre o que os conservadores dizem acreditar e as políticas que realmente seguem ou condenam. Dos seguidores religiosos aos defensores do livre mercado, há pouca ou nenhuma consistência a ser encontrada. Os ativistas antiaborto valorizam a vida, mas parecem ignorar as necessidades médicas do bebê após o nascimento, e os libertários acreditam na liberdade em todas as áreas da vida, exceto no trabalho, onde passam a maior parte do tempo.

Essas contradições não surgem da confusão dos próprios conservadores, por mais autoilusórios que possam ser, mas estão integradas em sua ideologia política, pois servem para tornar aceitáveis e legítimas ideias que de outra forma seriam ofensivas ou claramente imorais. Portanto, essas ideias não são menos importantes por serem falsas, e o trabalho dos cidadãos preocupados em documentar o quão desastrosamente eficazes essas ideias podem ser não é menos urgente.

[RESENHA #615] O homem que compreendeu a democracia: A vida de Alexis de Tocqueville, de Oliver Zunz


APRESENTAÇÃO

De origem nobre e nascido no final do turbulento período de Terror da Revolução Francesa, Alexis de Tocqueville teve muitos de seus familiares presos e até mortos na guilhotina no período que antecedeu o estabelecimento da Primeira República Francesa, em 1794. E mesmo testemunhando o morticínio que levou à mudança de regime, foi uma voz importante de defesa do sistema democrático em detrimento da aristocracia.

Em 1831, aos 25 anos, Alexis de Tocqueville viajou para os Estados Unidos e observou a realidade palpável de uma democracia em funcionamento. Impactado pelos acontecimentos de seu tempo, tornou-se um estudante apaixonado e participante ativo da política liberal, passando a dedicar sua vida e carreira de escritor e político para acabar com o despotismo na França e levar o país a uma nova era democrática.

Olivier Zunz, um dos maiores especialistas em Tocqueville, observa as tentativas desse grande pensador de aplicar as lições de sua obra clássica A democracia na América na política francesa, além de mostrar como os Estados Unidos, e não só a França, ocuparam um lugar central no pensamento e nas ações de Tocqueville ao longo de sua trajetória. No final da vida, com seu país de origem sob o jugo de um regime autoritário e os Estados Unidos divididos pela escravidão, Tocqueville temia que o experimento democrático estivesse prestes a falhar. No entanto, sua paixão pela democracia nunca perdeu o vigor. Faleceu dois anos após o início da Guerra Civil nos Estados Unidos, a tempo de testemunhar uma ação de profunda transformação da sociedade americana.

O homem que compreendeu a democracia é uma biografia completa e inovadora do aristocrata francês que se tornou um dos maiores defensores da democracia. Ao pesquisar a combinação única entre a filosofia e a ação política de Tocqueville, em fontes francesas e americanas, Zunz oferece um retrato cheio de nuances do homem que lutou incansavelmente a favor do único sistema que acreditava poder proporcionar tanto liberdade quanto igualdade.

RESENHA

O livro é uma biografia fascinante que nos leva a um mergulho profundo na vida e no pensamento de um dos mais importantes pensadores políticos da história.

Em “O Homem que Entendeu a Democracia”, Olivier Zunz oferece uma série de detalhes como esses, não deixando escapar nenhum deles. Essa biografia nos apresenta, por vezes com apenas alguns traços reveladores, o jovem aristocrata ambicioso, mas deprimido, cuja extensa família foi massacrada pela guilhotina. Também nos mostra o escritor romântico que trabalhava incansavelmente para dar às suas frases uma simplicidade declamatória, buscando transmitir a verdade revelada através de um único exemplo. Além disso, revela o político liberal que passou seus melhores anos tentando equilibrar o controle sobre a reação monarquista e a revolução socialista, embora muitas vezes tenha sido suspeito de simpatizar com a primeira e nunca com a segunda. Embora Zunz admire claramente Tocqueville, ele não evita abordar o imperialismo apaixonado do próprio Tocqueville, que chegou ao ponto de apoiar a guerra de terra arrasada na Argélia. O autor não se esquiva de abordar essa faceta controversa do pensamento de Tocqueville, oferecendo uma análise crítica e equilibrada de suas ideias e ações.

Essa biografia é uma leitura essencial para aqueles que desejam compreender a vida e o legado de Alexis de Tocqueville. Zunz nos proporciona uma visão abrangente e perspicaz desse importante pensador político, destacando tanto suas contribuições significativas para a teoria democrática quanto suas contradições e complexidades. Tocqueville, conhecido por seu trabalho seminal “A Democracia na América”, é retratado de maneira magistral por Zunz, que apresenta uma pesquisa meticulosa e uma narrativa envolvente. O autor nos transporta para a França do século XIX, onde De Tocqueville nasceu e viveu em meio a uma época de grandes transformações sociais e políticas.

A verdadeira essência da biografia, apesar de todas as suas vinhetas reveladoras e contexto histórico, é o pensamento de Tocqueville, acima de tudo, expresso em sua obra "Democracia na América". Tocqueville foi capaz de compreender profundamente a natureza da democracia através de uma combinação de conversas com advogados eruditos e políticos aristocráticos em quem ele confiava, suas preocupações com a política tumultuada de seu país de origem e seu brilhante senso de intuição como psicólogo político. Sua interpretação dos Estados Unidos como uma profecia da vida democrática foi moldada por essas influências e experiências. Tocqueville foi capaz de enxergar além das aparências superficiais e capturar a essência da democracia em sua análise. Ele compreendeu que a democracia não se limitava apenas ao sistema político, mas também abrangia aspectos sociais, culturais e econômicos.

Tocqueville começou a desenvolver seu pensamento antes mesmo de ter um amplo conhecimento sobre o assunto. Ele possuía uma capacidade única de pensar de forma crítica e inovadora, o que moldou sua curta, porém intensa, vida de trabalho como político e intelectual.Zunz explora a formação intelectual de Tocqueville, desde sua educação aristocrática até sua experiência como magistrado e político. O autor nos mostra como as viagens de Tocqueville pelos Estados Unidos influenciaram profundamente seu pensamento, despertando nele uma compreensão única sobre a natureza da democracia e suas implicações para a liberdade e a igualdade. Além disso, o livro examina o contexto histórico em que De Tocqueville viveu, destacando os desafios enfrentados pela França pós-Revolução Francesa e as tensões entre a monarquia e a democracia emergente. Zunz nos mostra como esses eventos moldaram as ideias de Tocqueville e o levaram a se tornar um crítico perspicaz da sociedade e da política de sua época.

Nascido em 1805, Tocqueville cresceu em meio às memórias do período conhecido como o Terror. Sua família foi profundamente afetada pelos eventos da Revolução Francesa, com seus avós, tia, tio e bisavô sendo decapitados em 1794. Seus pais também foram presos e aguardaram a execução, mas sobreviveram devido à queda de Robespierre e ao fim das execuções. Essas experiências deixaram uma marca indelével em Tocqueville, mesmo com a riqueza e conexões de sua família, ele sempre se sentiu politicamente inseguro. Durante as décadas turbulentas de luta dinástica, ele frequentemente se viu em uma posição precária. Tocqueville era um aristocrata que percebia, com razão, que a aristocracia estava sendo gradualmente eliminada e suspeitava que havia nascido em um mundo que não tinha mais lugar para ele. Essa sensação de pertencer a um mundo em extinção moldou sua visão política e sua busca por compreender a natureza da democracia.

Tocqueville acreditava que a política democrática tendia ao fracasso porque a liberdade oficial de pensamento, como a liberdade de expressão, não resultava em liberdade real, mas sim em um novo tipo de conformismo e união de grupo. Ele observou que os americanos, embora teoricamente livres para expressarem suas opiniões, demonstravam menos independência de pensamento e liberdade de discussão do que as pessoas de outros países que ele conhecia. A autoconfiança tranquila dos cidadãos americanos sufocava a dissidência de forma tão eficiente que até mesmo um órgão de censura invejaria.  Tocqueville argumentava que, em uma democracia, a tirania não se manifestava diretamente no controle físico dos indivíduos, mas sim em sua influência sobre a mente das pessoas. Ele observou que um dissidente temia ser rejeitado e abandonado até mesmo por seus amigos, sendo rotulado como "impuro". Para Tocqueville, a tirania nas democracias se manifestava de forma sutil, afetando a alma das pessoas.

Ele também destacou que as democracias tendiam a oscilar entre explosões de energia radical e a estagnação causada pela ambição modesta, ansiedade e conformidade. Tocqueville via a democracia como um sistema complexo, cheio de contradições e desafios. Seus insights críticos sobre os efeitos da democracia na liberdade individual e na formação da opinião pública continuam sendo relevantes até os dias atuais. 

A observação de Tocqueville sobre as chamadas democracias serem frequentemente algo diferente é realmente reveladora e continua sendo verdadeira até hoje. Ele argumentou que essas democracias tendem a se estabilizar evitando a verdadeira democracia, criando suas próprias aristocracias e estabelecendo barreiras ideológicas contra a soberania popular. Essa evasão da democracia pode ser vista como algo a ser valorizado ou superado, dependendo da perspectiva. A capacidade de Tocqueville de enxergar além da fachada da democracia e identificar essas dinâmicas é um presente notável que ele nos deixou ao longo de quase dois séculos. Sua análise crítica nos leva a questionar as estruturas políticas e sociais que se apresentam como democráticas, mas que, na realidade, podem estar longe de alcançar a verdadeira participação e igualdade de poder.

Essa perspectiva de Tocqueville nos convida a refletir sobre o estado atual das democracias ao redor do mundo e a buscar formas de superar as limitações e evasões que podem estar presentes. Sua visão continua sendo uma fonte valiosa de insights e debates sobre a natureza e o futuro da democracia.Uma das maiores conquistas deste livro é a maneira como Zunz ilustra a relevância contínua do pensamento de Tocqueville atualmente. Ele destaca como suas ideias sobre democracia, participação política e o papel da sociedade civil ainda ressoam em debates contemporâneos.

O AUTOR

Olivier Zunz é professor emérito de História na Universidade da Virgínia. Foi professor visitante no Collège de France e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, entre outros. Recebeu fellowships e bolsas de pesquisa de instituições como Ford Foundation, Japan Foundation Center for Global Partnership, John Simon Guggenheim Memorial Foundation, National Endowment for the Humanities e National Science Foundation. É um dos maiores estudiosos de Alexis de Tocqueville, e organizou obras sobre o autor como The Tocqueville Reader: A Life in Letters and Politics, com Alan Kahan; Alexis de Tocqueville and Gustave de Beaumont in America: Their Friendship and Their Travels; e Recollections (1850-1851).

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