[RESENHA #589] Se a cidade fosse nossa, de Joice Berth

APRESENTAÇÃO

Nos últimos anos, Joice Berth angariou posição importante na opinião pública com argumentos preciosos sobre os desafios que as lutas antirracista e feminista enfrentam para avançar em pautas fundamentais de igualdade social – seja nos costumes, no mercado de trabalho ou na política institucional. Suas colocações a tornaram referência nas redes, fazendo com que a arquiteta e urbanista de formação fosse rapidamente reconhecida como uma das influenciadoras mais requisitadas para analisar fatos e comportamentos que escancaram nossas questões sociais mais alarmantes.

Em Se a cidade fosse nossa, Joice Berth se volta para o tema principal de seus estudos e preocupações: o direito à cidade. Neste livro, as disciplinas de arquitetura e urbanismo são singradas pela crítica racial e feminista. A autora, através de uma escrita propositiva e acessível, conta a história da formação das cidades brasileiras desde a colonização, para deixar evidente o quanto nossos projetos de urbanização, mesmo os mais recentes, carregam uma herança higienista que teima em se perpetuar. Dessa maneira, o pensamento e os projetos de arquitetos e urbanistas de renome, como Lúcio Costa, Lina Bo Bardi e Diébédo Francis Kéré, são pareados às referências de Angela Davis, bell hooks, Patricia Hill Collins, Paulo Freire e Milton Santos.

Após a leitura deste Se a cidade fosse nossa, dificilmente o espaço urbano continuará sendo visto como modelo uniforme que distancia centro e periferia, ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres. Aqui, Joice Berth propõe alternativas aos municípios brasileiros do século 21, para que possam se transformar em espaços de sinergia de saberes, congregação dos diversos modos de vida e de oportunidade de uma existência melhor para todos, sem distinção de gênero, raça, classe e orientação sexual.

RESENHA


Se a cidade fosse nossa é um ensaio primoroso acerca do pertencimento da cidade e das grandes metrópoles à todos, em uma provocativa série de questões que tornaram as grandes cidades um centro monopolizado de exclusão seletiva e imparcial.

Em conversas, eu inicio perguntando: A cidade tem gênero? E todo mundo fala que não, [que], a cidade é um espaço livre que a gente pode transitar por todos os cantos. Mas, não é bem assim, as percepções das pessoas com relação aos espaços das cidades precisam ser provocadas. A gente sabe que existem questões relacionadas ao assédio sexual nas ruas, nos transportes públicos, mas isso é só a pontinha do iceberg, que está imerso em muitos outros problemas. - Joice Berth

Arquiteta e Urbanista, Joice Berth traça em seu novo livro uma nova linha de análise da desigualdade econômica e social existentes no campo social. Sua escrita atomiza de forma significativa os inúmeros questionamentos acerca do desenvolvimento das grandes metrópoles e dos meios socioeconômicos e mercantis que potencializam, de forma crescente, as diferenças sociais que se estabelecem na mesma proporção de crescimento das metrópoles, quanto dos envolvidos no seio de seu desenvolvimento - ainda que de forma indireta - responsáveis pela produção desacelerada do capital e da urbanização de grandes centros superlotados da indiferença pela classe C, D & E.

A violência cresce de acordo com o capital inserido em um espaço-tempo, o que adere ao local um estilo de vida diferente de centros menos capitalizados, o que infla a grande massa que separa os poderes econômicos que estabelecem entre as ruas e os grandes centros as diferenças palpáveis da desigualdade. Essa diferença tensiona as chamados violência urbana direta e indireta, que obriga cidadãos de menor poder aquisitivo à se deslocarem de forma contínua às imposições exigidas pelo grande escalão, dentre outras palavras, quando o capital cresce de forma desacelerada surge um novo delineado de comportamento social. Este espaço tende à sofrer alterações não somente em suas estruturas, mas no comportamento de todos os envolvidos. Este percurso altera o seio do comportamento daqueles que não acompanham as nuances das transformações, que sempre - sempre -, são envoltos da exclusão social e paradigmática dos indivíduos em seus meios de vivência, ocasionando em expulsões de moradores de grandes áreas, derrubada de campos de acampamento, desabrigo de sem-tetos e agressões à pessoas em situação de vulnerabilidade. 

Nos últimos anos, Joice Berth ocupou posição de destaque na opinião pública com argumentos valiosos sobre os desafios enfrentados pela luta contra o racismo e pelos direitos das mulheres para fazer avançar as causas princípios fundamentais da igualdade social - seja na cultura, no mercado de trabalho ou na sociedade. Suas declarações fizeram dele uma referência, fazendo com que arquitetos e urbanistas rapidamente se tornassem um dos facilitadores mais requisitados para analisar acontecimentos e comportamentos que expõem nossos mais alarmantes problemas sociais.

A autora também explica que a sociedade é também um grande consolidador das grandes problemáticas envoltas dentro desta questão, pelo simples fato de não estarem de forma à se compreenderem no meio ao qual estamos inseridos, desta forma, nenhuma luta que visa a transformação coletiva de forma eficiente pode ser alcançada. Desta forma, falar de cidade e construção envolve uma série de questionamentos à se serem analisados de forma cautelosa levando em consideração inúmeros fatores que mesclam e tensionam a busca por uma resposta de forma satisfatória e concreta.

No capítulo 2 da obra, se a cidade fosse negra?, a autora nos convida à abrir nossos olhos para uma ação de performance acerca do conceito de raça, que atualmente, exclui de forma categórica e seletiva à participação e marginalização dos povos negros no desenvolvimento e participação social, causando o chamado racismo urbanista e racismo ambiental. Os capítulos seguintes analisam de forma mais abrangente os estudos da autora acerca de como seriam as cidades se elas fossem negras (p.109), das mulheres (p.155) e a possibilidade de manter o empoderamento e o direito à cidade em pauta unilateral, seria isso uma possibilidade?

Em Se a cidade fosse nossa, Joice Berth volta-se para o tema central de suas pesquisas e interesses: o direito à cidade. Neste livro, princípios de arquitetura e espaço urbano são combinados com críticas de raça e mulheres. A autora, descreve a história da construção das cidades no Brasil desde a formação das colônias, para esclarecer que os projetos de urbanização, mesmo os mais recentes, carregam um legado de exclusão avançando.

Depois de ler Se a cidade fosse nossa, a região metropolitana não seria mais vista como o mesmo padrão entre centro e periferia, ricos e pobres, brancos e negros, homens e mulheres. Aqui, Joice Berth propõe vários caminhos para que as cidades autônomas do Brasil do século 21 se tornem um local de encontro de conhecimento, convergência de diferentes modos de vida e oportunidades de uma vida, para todos, independentemente de gênero, raça e classe. 

A obra é um poderoso convite à refletirmos sobre o espaço-tempo e o desenvolvimento dos grandes centros urbanos e das cidades, bem como seus reflexos racistas, excludentes e inapropriados para o desenvolvimento de uma sociedade justa e igualitária. Uma obra magistral.

A AUTORA

Joice Berth (São Paulo/SP, 1976) é arquiteta e urbanista, escritora, curadora e psicanalista. Voz firme e atuante nos debates antirracistas e antipatriarcais no Brasil, Joice Berth soma milhares de seguidores nas redes sociais e é colunista da revista Elle Brasil e do portal Terra. Em 2018, publicou Empoderamento, na coleção Feminismos Plurais, organizada por Djamila Ribeiro (selo Sueli Carneiro/Editora Jandaíra)  um dos livros mais importantes para o feminismo negro brasileiro da última década   , também lançado na França no ano seguinte. Em 2020, foi eleita pela revista Wired uma das cinquenta mentes mais criativas do Brasil. Se a cidade fosse nossa, obra que inaugura sua crítica sobre direito à cidade, opressões urbanas e luta por moradia, é seu livro de estreia no catálogo da Editora Paz & Terra.

[RESENHA #588] A rainha, de Andrew Morton


APRESENTAÇÃO

Em A rainha, o biógrafo Andrew Morton, autor best-seller referência em biografias sobre a monarquia britânica, apresenta ao leitor detalhes inéditos a respeito da monarca mais singular e consagrada da Grã-Bretanha.

Após a morte prematura do pai, George VI, Elizabeth Alexandra Mary se viu como Elizabeth II, a mais nova rainha da Grã-Bretanha.

A rainha relata como, tendo ascendido ao trono aos 25 anos, a discreta monarca enfrentou uma série de contratempos e conflitos familiares, mas também protagonizou importantes triunfos, sempre com muita seriedade, comprometimento e respeito à tradição ― características que se tornaram símbolos marcantes dos setenta anos de seu reinado.

Ao mesmo tempo chefe de Estado e da Igreja da Inglaterra e líder da Grã-Bretanha e da Commonwealth, Elizabeth II provou sua resiliência e seu comprometimento ao dar tudo de si para manter a monarquia britânica relevante cultural, social e politicamente ― enfrentando, por vezes, resistência dentro da própria instituição. Ainda assim, as maiores crises que ela precisou administrar surgiram em sua família, sempre sob intenso escrutínio da opinião pública: os rumores sobre a infidelidade do marido, o príncipe Philip, o lapso conjugal da irmã, a princesa Margaret, a trágica morte da princesa Diana, na época sua nora, e o recente distanciamento de Harry e Meghan dos deveres reais.

Em A rainha, Andrew Morton, autor do best-seller Diana: Sua verdadeira história, celebra o longo reinado de Elizabeth II com um compilado de todas as polêmicas, os desafios e também os méritos da singular soberana; além de contar com um encarte que atravessam toda a vida da soberana e trazer um Epílogo com considerações e previsões a respeito das futuras gerações da monarquia britânica após essa segunda era elisabetana.


RESENHA

Uma vida repleta de segredos e mistérios, mas construída de forma majestosa em seu caminho até o fim de seu reinado, a vida de Elizabeth II iniciou-se após a abdicação de seu tio, David, para casar-se com Wallis Simpson, conseguinte, Elizabeth tornou-se rainha por ser a próxima de sucessão na linha do trono.

Elizabeth teve o reinado mais longo da história da Inglaterra, tendo se mantido no poder por sete décadas. Após o falecimento precoce de seu pai, ela começara a enfrentar um novo caminho como mulher, mãe, esposa e chefe da casa de Windsor: seu reinado abarcou os principais acontecimentos sociais, mundiais e políticos, dentre eles : A descoberta do antibiótico e do DNA; Ascensão e queda da segunda guerra mundial; o primeiro homem à pisar na lua; luta e prisão de Nelson Mandela; início da internet, wi-fi e smartphones estão entre os acontecimentos abarcados durante o reinado da rainha.

A vida da rainha era conturbada no seio familiar, diariamente, milhares de especulações e dados curiosos rondaram sua família, como a morte do pai, divórcio de dois filhos, rumores da suposta infidelidade do marido e o rompimento conturbado do casamento da irmã.

Em 2022, iniciou-se o Jubileu de Palatina, o evento que comemorava os setenta anos de vida e reinado da rainha, ao invés de afastar-se de suas funções, encarou-as com vigor, operando toda uma nação à uma sucessão de acontecimentos que a tornaram única para todo o planeta por seus posicionamentos, decisões e pelo crescimento econômico considerável da Inglaterra. 


A obra de Morton é mais um marco em suas várias biografias ao redor do mundo, e uma das mais fiéis e aclamadas pela crítica em tópicos de assuntos de interesse coletivo.

O livro editado pela editora Best Seller, selo de autoajuda e biografias do Grupo Editorial Record, é uma obra primorosa com uma tradução extremamente precisa e elaborada feita por Alessandra Bonrruquer. A obra consta com quatorze capítulos que vão desde à vida antes da coroa à sua descrições mais polêmicas acerca da princesa Diana, os funerais familiares, os escândalos e os segredos advindos de sua coroação.

Uma obra para se ler em uma única sentada. Simplesmente fantástico.

O AUTOR

Andrew Morton estudou História na Universidade de Sussex, Inglaterra, com foco na aristocracia e na década de 1930. Escreveu diversas biografias de celebridades, assim como de alguns membros da família real britânica, como as do duque e da duquesa de Windsor e de Meghan Markle. A biografia que escreveu em colaboração com a princesa de Gales, Diana: Sua verdadeira história, alcançou o topo da lista de mais vendidos do New York Times e foi descrita pelos críticos como “um clássico moderno” e a obra “que mais perto chega de uma autobiografia da princesa”.

[RESENHA #587] Esfarrapados: Como o elitismo histórico-cultural moldou as desigualdades no Brasil, de Cesar Calejon


 APRESENTAÇÃO

Em Esfarrapados, Cesar Calejon destrincha em detalhes os mecanismos culturais e históricos que explicam como as elites se formaram, como atuam para dominar a sociedade e como conseguem manter sua posição de comando e ampliar seus ganhos econômicos exponencialmente. Para que se compreenda como essas dinâmicas de exploração se dão, o autor nos apresenta o conceito “elitismo histórico-cultural”. Trata-se de uma força social que organiza os arranjos sociais com base em categorias de distinção, de forma a criar uma gramática da desigualdade e, em última instância, uma hierarquia moral que rege o funcionamento sociopolítico e socioeconômico de uma comunidade.

Cesar Calejon defende que as raízes do elitismo histórico-cultural estão presente nas sociedades humanas desde os tempos remotos, anteriores mesmo à Revolução Agrícola. O autor nos conduz ao longo do tempo e demonstra como seu conceito se aplica às diferentes sociedades em diferentes momentos históricos, indicando as Grandes Navegações e o advento da Revolução Industrial como trampolins que intensificaram radicalmente a sanha elitista. Assim, chegamos até o Brasil contemporâneo, onde as expressões do elitismo histórico-cultural – racismo, machismo, misoginia, LGBTQIA+fobia, capacitismo, viralatismo, entre outras – se consolidam como formas permanentes de dominação cultural e alicerçam nossa tradição em segregar, excluir e estigmatizar as minorias, tal é feito pelas ideologias brasileiras autoritárias, como o bolsonarismo.  

Por fim, o autor explica como os debates sobre determinação natural e os estudos culturais nos ajudam a entender de que maneira essas construções ideológicas da superioridade são disseminadas. E, principalmente, como essas estruturas de poder bem estabelecidas podem ser desmontadas, de modo a se distinguir quais são os problemas reais que devem ser superados para que a desigualdade social seja extinta de uma vez por todas.

RESENHA



Autor faz uma espécie de genealogia da elite no Brasil e descreve os mecanismos usados por ela para se manter no comando.

A obra do autor é mostra como os mecanismos da desigualdade se propagam entre as elites que criam as diretrizes da moral predominante nos fatores culturais e históricos para se estruturalizar e se manter no poder. Calejon, descreve que o elitismo histórico-cultural se mantém por meio do poder da ação no seio das questões políticas pré-existentes, subsistindo de forma categórica e arbitrária sobre os mais fracos, como forma de categorizar e arranjar os seios fundacionais das diretrizes do poder.

Cada aspecto do privilégio extremo, não apenas nacional, mas globalmente, começa com a premissa de que existem pessoas fortes e outras biologicamente fracas. O desenvolvimento humano é a base da cultura. Isso acontece culturalmente com base na biologia de nossa espécie. Quando você entende isso, você se apropria para entender que isso se aplica à forma como nossa sociedade é organizada

A obra se inicia com uma frase de Louis-Arnand de Lom d'Arce, de Lahontan, sobre os nativos ameríndios que haviam visitado a França, no livro mémoires de l'Amérique Septentrionale [Memórias da América Setentorial], 1705:

Eles estavam continuamente nos provocando com as falhas e desordens que observação em nossas cidades, como sendo ocasionadas por dinheiro. Não adianta tentar repreendê-los sobre o quão útil é a distinção de propriedade para o sustento da sociedade: eles não discutem, nem brigam, nem caluniam uns aos outros, eles zombam das artes e das ciências e riem das diferenças de classes que observa entre nós. Eles nos marcam como escravos e nos chamam de almas miseráveis, cuja vida não vale a pena, alegando que nos degradamos ao nos sujeitarmos a um homem [o rei] que possui todo o poder e não está sujeito a nenhuma lei, exceto a própria vontade [...].

A observação elaborada por Louis-Arnand é uma descrição clara e objetiva de como os fundamentadores das grandes elites enxergam e observam as diferenças existentes entre um povo e sua visão predominantemente pequena acerca da desigualdade social e coletiva. Um retrato conhecido e difundido na política, sobretudo, brasileira.

O segundo texto de abertura é um trecho do poema/música, guerra, de Bob Marley, onde o autor e músico faz alusão entre as diferenças existentes entre os povos dentro da sociedade responsáveis por atomizar não somente as diferenças dentro de uma nação, mas para existência da própria guerra, uma vez que falta-lhe o entendimento acerca da importância da variação de culturas em uma sociedade, na íntegra:

Até que a filosofia que considera uma ração superior e outra inferior seja final e permanentemente desacreditada e abandonada, em todos os lugares há guerra, digo guerra. Até que não haja cidadãos de primeira e segunda classe de qualquer nação. Até que não haja cidadãos de primeira e segunda classe de qualquer nação. Até que a cor da pele do homem não tenha mais importância do que a cor de seus olhos, digo guerra. Até esse dia, o sonho de paz duradoura, a cidadania mundial e o domínio da moralidade internacional permanecerão uma ilusão fugaz a ser perseguida, mas nunca alcançada, agora em todos os lugares há guerra.

Entre outros pontos, poderemos dizer que a sociabilidade atual se dá por meio da construção existente na diferença do povo, seja ela econômica ou racial, de todo modo, essa existência se dá pela acepção da relação entre os sujeitos econômicos, entre outras palavras, pode-se afirmar que a grande existência vertical do acúmulo predefinido pelo capitalismo é a zona crescente da oposição entre os povos.

Os capítulos da obra se dividem em 11 partes, cada qual desdobra-se sobre descrições precisas e históricas acerca da construção do elitismo no seio social, os capítulos analisam a desigualdade por diferentes óticas, o uso da ciência como descrição da seleção natural pré-existente e suas nuances, genética, o funcionamento e surgimento do elitismo, matrerialismo histórico e dialético e suas construções; política histórica e social, análise dos efeitos do elitismo histórico e cultural nos povos e na sociedade através do tempo, dentre outros.

A obra foi lida e indicada por Fernando Haddad como um tópico de extrema importância para leitura e informação, e devo acrescentar, ele está certo. Uma obra magistral que deve percorrer todo o seio social para que se alcance o maior número de leitores ao redor do mundo, uma análise precisa e cirúrgica.

O AUTOR

Cesar Calejon é jornalista, com especialização em Relações Internacionais pela Fundação Getulio Vargas, e mestre em Mudança Social e Participação Política pela Universidade de São Paulo. É autor dos livros A ascensão do bolsonarismo no Brasil do século XXITempestade perfeita: o bolsonarismo e a sindemia covid-19 no Brasil e Sobre perdas e danos: negacionismo, lawfare e neofascismo no Brasil.

[RESENHA #586] O próximo e o distante, ensaios sobre a cultura afro brasileira, de Roger Bastide


APRESENTAÇÃO

Os contatos entre diferentes povos remontam aos tempos pré-históricos, com as grandes migrações, trocas comerciais, guerras de dominação etc. Apesar disso, os indivíduos tendem a preferir se enraizar em uma terra, a ficar entrincheirados dentro de uma casa, a diferenciar os “seus” e os “outros” ― estes frequentemente tratados como estrangeiros, bárbaros, seres que provocam medo e afastamento, pela diferença física ou de costumes. Ao longo da história da humanidade, notamos uma aproximação progressiva entre os povos. Com o avanço tecnológico, nos últimos séculos, dos meios de transporte e comunicação, houve uma redução da distância entre diferentes culturas. E, ao ocupar cada vez mais os mesmos espaços públicos e privados, poderíamos esperar maior fraternidade e unidade mundial entre povos distintos. No entanto, o contato com o outro costuma ser atravessado por uma mentalidade de fechamento, carregada pelos nossos preconceitos, pelas nossas ignorâncias e pela nossa dificuldade de deixar de lado o desejo de dominação e de hegemonia.

O próximo e o distante reúne artigos, conferências e cursos produzidos no período de 1950 a 1965, aos quais o autor acrescenta dois capítulos originais e alguns textos que os conectam. O livro se articula em torno do conceito de aculturação, que Bastide associa à “interpenetração das civilizações”. Ele analisa o que acontece quando os homens encontram outros homens de cultura diferente, quando seu “próximo” é também um “distante”. Na primeira parte do livro, trata do “encontro dos homens”, em que interfere o preconceito racial. Em seguida, aborda o “encontro das civilizações”, com as diferentes formas subsequentes de aculturação. E, finalmente, se debruça sobre o “encontro das religiões”, com a emergência do messianismo e do nacionalismo.

O próximo e o distante é um belo livro antirracista, sem angelismos e surpreendentemente atual, que nos permite refletir também sobre o momento em que vivemos: um encontro de civilizações, com a presença “próxima”, agora realizada, dos outrora “distantes” povos africanos e asiáticos.

RESENHA


"O Próximo e o Distante" é uma obra magnífica escrita por Roger Bastide, um renomado sociólogo e antropólogo francês. Publicado pela primeira vez em 1957, o livro explora de forma profunda e reflexiva as dinâmicas sociais e culturais presentes nas sociedades brasileiras.

Bastide apresenta uma abordagem única ao estudar a relação entre o "próximo" e o "distante", conceitos que se referem às interações e conexões entre os diferentes grupos sociais dentro de uma sociedade. Ele argumenta que a compreensão dessas relações é essencial para entender a estrutura social e a diversidade cultural de uma nação, como o Brasil.

Ao longo do livro, o autor utiliza uma vasta gama de exemplos e estudos de caso para ilustrar suas ideias. Ele explora temas como a hierarquia social, as relações raciais, as práticas religiosas e as manifestações culturais, examinando como esses elementos se entrelaçam e influenciam a vida cotidiana dos brasileiros.

Uma das contribuições mais importantes de "O Próximo e o Distante" é a análise profunda e sensível do fenômeno do racismo no Brasil. Bastide destaca como as relações raciais são complexas e multifacetadas, e como a hierarquia racial molda a vida das pessoas. Ele também enfatiza a importância de uma abordagem antropológica para entender, combater e superar o racismo. A divisão de sua obra faz um enfoque profundo e atento aos problemas de raça no Brasil sob diversas óticas distintas, desde cotidianas à históricas.

A obra do autor divide-se em três partes, sendo elas:

1. O encontro dos homens: Um capítulo que volta-se para uma análise aprofundada acerca do preconceito racial brasileiro, os problemas das relações raciais no ocidente, a dimensão da problemática no campo econômico, sexual (à vênus) e à dimensão religiosa.

2. O encontro das civilizações: Neste capítulo o autor desdobra-se à explicar como se deu o processo de aculturamento (introdução de uma nova cultura à outra) na esfera formal; jurídica, folclórica, culinária, literária e religiosa.

3. A tempestade mística: Introdução dos mitos e utopias acerca da cultura afro em território brasileiro; o messianismo e a fome; o messianismo inconcluso;  nacionalismo  e o desenvolvimento social e econômico.

Uma das principais ideias abordadas por Bastide é a noção de "próximo" e "distante" como categorias que influenciam as interações sociais. De acordo com o autor, o "próximo" se refere àqueles que compartilham das mesmas experiências e valores culturais, enquanto o "distante" representa aqueles que estão fora desse círculo de familiaridade. Bastide argumenta que essas categorias são fundamentais para compreender as relações sociais e as dinâmicas de inclusão e exclusão no Brasil.

No livro, Bastide também discute o tema das relações raciais no Brasil, destacando a complexidade da questão e as diferentes formas de discriminação e preconceito presentes na sociedade. Ele argumenta que o racismo no país é estrutural e cultural, e que a miscigenação não é suficiente para eliminar as desigualdades raciais. Bastide enfatiza a importância de políticas públicas que promovam a igualdade racial e a valorização da cultura afro-brasileira. Em síntese, a obra de Bastide é um convite incrivelmente necessário ao fomento dos estudos nas áreas de ciências sociais e história para uma compreensão mais assertiva acerca do desenvolvimento do campo social e suas contribuições analíticas das relações interraciais.

O AUTOR

Roger Bastide (1898-1974) foi um sociólogo e antropólogo francês, considerado uma das maiores referências da sociologia no Brasil e na França. Chegou ao Brasil em 1938, acompanhando a missão francesa que havia implementado o curso de Ciências Sociais na Universidade de São Paulo, onde substituiu Lévi-Strauss e lecionou até 1954. Alguns de seus alunos foram Antonio Candido, Gilda de Melo e Souza e Florestan Fernandes. Com este último, inclusive, coordenou um estudo da Unesco sobre a questão racial do Brasil. Bastide dedicou-se ao estudo das religiões afro-brasileiras, da arte e da literatura nacionais e do sincretismo religioso no país. Entre suas principais obras, estão Brasil: terra de contrastes, O candomblé da Bahia e Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo (com Florestan Fernandes).

[RESENHA #585] O primeiro indígena universitário do Brasil, de Luiz Guilherme Scaldaferri Moreira e Marcelo Sant'Ana Lemos


APRESENTAÇÃO

José Peixoto Ypiranga dos Guaranys viveu entre os anos de 1824 e 1873 e foi o primeiro bacharel indígena formado na Faculdade de Direito de São Paulo. Sua história e luta pelo direito de acesso ao ensino superior, que se inicia no Rio de Janeiro oitocentista, na outrora aldeia de São Pedro, numa Cabo Frio do século XIX, ressoa ainda na sociedade de hoje, quando o Brasil chega à celebração do bicentenário de sua independência de Portugal.

É o que mostram os historiadores Luiz Guilherme Scaldaferri Moreira e Marcelo Sant'Ana Lemos, que resgatam neste livro a instigante e complexa trajetória desse personagem.

Ypiranga dos Guaranys atuou como advogado, foi vereador e ocupou importantes cargos públicos em Cabo Frio e Macaé. Em São Paulo, foi colega de classe do escritor José de Alencar. Destacou-se por sua participação nos debates políticos, ideológicos e literários sobre os povos indígenas.

Esta é sem dúvida uma publicação de relevância para nossa historiografia, como destacam Maria Regina Celestino de Almeida e José R. Bessa Freire em seus textos introdutórios. A obra tem, entre outros, o mérito de mostrar a importância de se considerar a presença e participação indígena nos processos intrínsecos que ajudaram a construir o Estado e a identidade do povo brasileiro.

RESENHA


Moreira, Luiz Guilherme Scadaferri: O primeiro indígena universitário do Brasil: Dr. José Peixoto Ypiranga dos Guaranys (1824-1873) // Luiz Guilherme Scaldaferri Moreira, Marcelo Sant'Ana Lemos. -- 1ed. -- Cabo Frio, RJ: Sophia Editora, 2022.

A obra o primeiro indígena universitário do Brasil, de Luiz Guilherme Scaldaferri e  Marcelo Sant'Ana Lemos é um relato histórico acerca vida e formação do primeiro indígena brasileiro a se formar na faculdade de Direito de São Paulo, em 1850, onde ingressou em 1846. A obra foi editada pela Sophia editora e consta com um trabalho gráfico editorial impecável, que torna a leitura ainda mais histórica, imponente e forte em seu propósito.

A obra se inicia com uma descrição breve do império ao qual o Brasil era comandado no ano entre 1840 e 1849, durante o reinado de D. Pedro II, que desenvolveu uma tarefa árdua de se  civilizar os povos não categorizados como civilizados ou hostis, uma tarefa complexa, mas ao qual acreditavam ser possível.

Ao longo do curso, reafirmou a sua identidade de indígena, ao mudar de nome para José Peixoto Ypiranga dos Guaranys. Após se formar, o “índio, cristão, ci-vilizado”, súdito e, agora, bacharel em direito se apresentava a serviço do impe-rador/Estado, o que lhe permitiu manter a família na elite política, econômica e social do Império. [Trecho do artigo O primeiro indígena universitário do Brasil]

A história de Ypiranga dos Guaranys é uma forma de desmontar a história do Brasil durante o processo e percurso de construção social da independência do Brasil, fomentando ainda mais a participação histórica do povo indígena durante todo este processo, com suas contribuições para a democracia, bem como para o desenvolvimento da pluralidade de povos e oportunidades que se sucederam a partir dai, uma vez que o mesmo encontrou durante o período de formação acadêmica alguns pontos que somaram de forma significativa em sua vida social e construção política, como, o bacharel e as constantes apresentações como representante do império, o que manteve sua família na elite, dentre outros feitos.

A colonização era uma forma de trazer os indígenas para a civilização, de acordo com um texto de Januário da Cunha Barbosa, esse feito se daria por meio do contato frequente dos povos com os homens brancos, como uma forma de miscigenar o povo em uma política constante de branqueamento, porém, os indígenas eram dotados de uma riqueza particular de vida, o que dificultava o trabalho de civiliza-los de forma satisfatória, ainda que o recurso buscasse uma miscigenação [mistura de raças], o processo encontrou alguns percalços. Os índios considerados uma raça inferior ameaçavam, segundo eles, o processo civilizatório e econômico do país, desta forma, foi-se necessário iniciar uma tática que permitisse uma integração deste povo de forma pacífica ou violenta. 



Detalhes da diagramação da obra 

Pouco se conhecia acerca dos índios e seu modo de vida, desta forma, era necessário traçar uma nova perspectiva que permitisse um estudo mais abrangente acerca das táticas tomadas para o processo civilizatório deste povo.

Desta forma através das linha de acontecimentos temporais:

[...] O ensino secundário acabou por ser influenciado pelo viés humanístico do ensino superior, sobretudo o do curso de direito, que era o mais procurado. No geral, ficou quase que restrito à iniciativa privada e, portanto, grande parte da população, sobretudo, das camadas mais baixas, estava excluída de qualquer instrução escolar (Ferreira Jr. 2010, p.33 e Romelli, 1986, p.39). (p.70) [grifos meus]

Desta forma, aprendeu alguns princípios gramaticais, geometria e o contato com o desenvolvimento da moral cristã que estava em voga, bem como a ideologia oficial do estado, o que o levou para São Paulo para o ingresso no curso de direito (p.75).

Aos 22 anos, Ypiranga dos Guaranys, matriculou-se na Faculdade de Direito. Durante os estudos, ele se envolveu ativamente no mundo acadêmico, onde se debatiam direito, política e literatura. O principal objetivo desse ambiente era fornecer uma educação clássica, voltada para a formação de bacharéis destinados a ocupar cargos políticos (p.74). Além das matérias específicas da área jurídica, o curso de Direito, assim como outros cursos superiores, também oferecia uma formação humanista, englobando disciplinas como filosofia e retórica. A maioria dos estudantes era composta pela elite da aristocracia agrária, que buscava garantir títulos de "doutores" em Direito para seus filhos.

Além do controle ideológico exercido pelo Estado sobre o curso, que envolvia o currículo, os programas das disciplinas e os livros adotados, havia ainda a presença de outra estrutura conhecida como padroado. Essa estrutura se manifestava na disciplina de "direito público eclesiástico", que abordava a institucionalização do cristianismo romano como religião oficial do Estado.

Em 1854, pediu a seu pai [Joaquim Rodrigues Peixoto] que solicitasse o ressarcimento dos gastos que teve com ele durante sua formação, o que foi o estopim para que se começassem os debates acerca da importância da formação acadêmica dos indígenas.

Todavia, podemos perceber como Joaquim Rodrigues Peixoto apresentava a sua família como 'civilizada', por meio da 'boa educação', e que tinha o dever de 'tutelar' os indígenas 'pobres', 'viciosos' e 'degradados', da antiga aldeia colonial de São Pedro rumo a 'civilização'. (p. 99)

Os dois pedidos mostram como os indígenas, de forma isolada / familiar (1854) ou como aldeados (1872), traçaram estratégias para obter ganhos. Para isso, precisavam ter amplo conhecimento da burocracia e finanças do Estado, uma vez que, dependiam de respostas dos mais alto níveis de administração imperial, provincial e municipal e do uso de recursos que estavam à sua volta - foros pagos à conservatória dos índios - para o pagamento das mensalidades dos cursos superiores, que eram todos particulares no Brasil Império (p. 99).

A obra também analisa toda árvore genealógica de Ypiranga dos Guaranys, desde seu pai à seus avós, bem como todos os proventos por ele herdado e todas as conquistas no meio jurídico e social, levando em consideração sua forte influência para enfatizar e levar ao foco público a importância do ingresso em cursos de nível superior aos indígenas. Os autores preocuparam-se em estabelecer uma linha cautelosa de acontecimentos que marcam todo o processo do contato e encontro entre os indígenas locais e o ideal da educação comum para todos.

O que podemos observar é que está obra é simplesmente histórica e necessária, que precisa ser lida por todos, para conhecimento e entendimento acerca do percursos adotados no meio acadêmico brasileiro dentro das fontes históricas, bem como o desenvolvimento de uma sociedade mais miscigenada, mista e única em propósitos civilizatórios arraigados à educação e na iniciativa de um povo por meio do processo de perfomance em prol do bem comum social coletivo.

Análise de Livro
Capa do Livro

Avliação geral

O primeiro indígena universitário do Brasil é um estudo apaixonante. A obra escrita por Scaldaferri e Sant'Ana Lemos é, certamente, uma das obras mais complexas acerca da vida e existência de Ypiranga dos Guaranys. O autor preocupou-se em estabelecer uma linha cronológica que possibilitasse ao leitor conhecer todos os caminhos da importância da história da persona, tornando a obra rica em detalhes e documentos históricos. Uma obra para usar como referência para futuras biografias pelo mundo, um zelo notável.

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[#LeiaNacional] Entrevista com Cris Oliveira, autora de ❝Escova de dentes❞


Com uma escrita experimental, que traz influências da poesia concreta, da poesia narrativa e do haicai japonês, "Escova de dentes” (104 pág) é o livro de estréia da bibliotecária paulistana Cris Oliveira (@cris_taiane), uma das finalistas da chamada de publicação em poesia da Editora Claraboia. Publicado pelo selo de publicação assistida da Claraboia, a Editora Paraquedas, o livro tem orelha assinada pela escritora Ana Rüsche, finalista do Prêmio Jabuti em 2019. 


Nascida em 1974 em São Paulo, capital, Cris Oliveira é formada em Biblioteconomia e Documentação pela USP e trabalha com gestão de coleções digitais e metadados na sede da Organização Mundial da Saúde (OMS) em Genebra, na Suíça, onde reside. Participou em antologias da I Jornada de Poesia Virtual e do VI Festival de Poesia de Lisboa, tem textos publicados na Ruído Manifesto, selo Off Flip e no blogue da Bibliotrónica Portuguesa da Universidade de Lisboa. 


Hoje, Cris nos conta um pouco mais sobre como se deu seu processo criativo em uma entrevista esclarecedora. Confira abaixo:

1. Escova de dentes é um livro sobre cotidiano e sobre como somos afetados por momentos, tensões e sentimentos no decorrer do dia a dia, porém, a obra não constitui um fio condutor, tornando a leitura fluida e única para cada leitor. Como optou por escrever uma obra nesta temática e com essa forma tão específica?

Sim, escrevi os poemas ao longo de quatro anos a partir de observações e reflexões feitas durante minhas perambulações e em momentos do cotidiano que envolvem desde tarefas triviais a experiências mais importantes como relações e sentimentos. Essa pergunta é muito boa porque me obriga a tentar entender a minha escrita, coisa que ainda não domestiquei, e que também não quero. Acho que a obra foi tomando um rumo sem eu me dar conta, e durante o processo surgiram perguntas, crises e muita reescrita. Encontrei poemas mais antigos que estavam na gaveta e que cabiam, e assim acho que foi nascendo o conjunto da obra, que fui descobrindo enquanto fazia. Acho que isso é o que mais gosto da escrita, a descoberta, seja fechando um poema com um verso ou uma rima, seja na revisão, na construção e reconstrução. Citando Peninha, “quando a poesia fez folia em minha vida”, o que mais me fascinava, e ainda me fascina, é a ideia da poesia nesse lugar onde tudo é possível, que nos convida a sair do costumeiro, de regras e formatos, de padrões, que nos convida a mudar o olhar. Eu acho que feras devem ser eternamente feras, e a escrita é isso pra mim, um bicho lindo, um instinto de criação que vem da natureza, de fora e de dentro da gente, que cria e recria sem parar, com a qual devemos conviver e compartilhar, não controlar. Momentos bons são momentos de harmonia com essa força, a poesia só pode ser isso, e é preciso entender menos e sentir mais. Pensar com o corpo. Esse é o lugar onde quero estar. A poesia é o portal e é o destino ao mesmo tempo. Gosto muito das provocações, do encanto poético, alguns poemas são mesmo respostas a poemas de grandes mestres, um atrevimento que é todo meu nessa experimentação que flerta com o sublime da poesia concreta, do haicai e da poesia narrativa. Talvez seja esse um fio condutor, a poesia experimental, essa forma. E, quando prestamos atenção, o ponto exato está ali, num detalhe. A palavra é o invento que faz o livro. Enfim, a poesia é tão primorosa que ela pode ser o que ela quiser, gosto de pensar que ela me dá carona. A última parte do livro, “Free soul”, é também essa afirmação. 

2. O título do livro é homônimo a um de seus poemas que exprime toda ideia central da obra. Ele foi o primeiro a ser escrito? Como optou pelo nome da obra?

Na verdade, o poema de título homônimo ao título do livro é um dos mais recentes, eu acho que foi o penúltimo poema que escrevi antes da publicação. Dar títulos a poemas não é uma tarefa fácil para mim. Eu brinco que um título pode ser um spoiler ou pode arruinar um poema, sobretudo quando limita a interpretação e condiciona a leitura. O Escova teve dois outros títulos, um pouco tristonhos. Precisei entender o que queria com minha escrita; gosto do encantamento da poesia através do humor, do jogo de palavras e de imagens. Foi relendo o “Escoliose” da Ana Frango Elétrico e o “Grapefruit” da Yoko Ono que tomei coragem de ousar, e o título veio do poema “visual arts”, e já tinha escrito o poema da epígrafe, que passou a ser epígrafe quando escolhi o título. “Hábitos atômicos” veio depois. Em espanhol tem uma palavra que eu adoro (por sua sonoridade e significado), que é “desubicado”, que é algo ou alguém fora do lugar, e a escova de dentes na geladeira é arte, é distração e é provocação para sair do piloto automático. O Escova talvez seja um livro desubicado.

3. Uma obra que aborda coragem e determinação ao mesmo passo em que somos tomados por sentimentos e aflições, um convite a encorajar-se nas questões difíceis. O caminho percorrido nas linhas tem algum motivo específico? por que decidiu falar sobre sentimentos de forma tão implícita?

Touché. Puxa, eu acho uma maravilha essa troca que a poesia proporciona, gosto de pensar que podemos ter a arte como cura porque ela é, é nosso alento, é inspiração, é nossa voz, é nossa resistência, é nossa união e identidade, individual e coletiva. Não é possível nadar no mar sem sentir a força das ondas, é meio clichê, mas a vida são esses movimentos, são momentos, a sensação que o tempo nos dá de ancorar, de não dar mais pé, de afundar, ou de boiar, esse entendimento de que é uma parceria mais do que uma luta para poder seguir nadando. Ao mesmo tempo, o poeta é um fingidor, bem disse Fernando Pessoa, os últimos anos não foram fáceis para ninguém. Quiçá na minha busca pela palavra exata, as dores sou eu e o verso são os outros. Quanto à franqueza, vou culpar a minha lua em virgem.

4. Pretende lançar outras obras dentro da mesma temática?

Eu gostaria muito de, independentemente do tema, conversar mais com o lirismo contemporâneo, que pra mim é um lirismo sem frescura, é lúcido, crítico e bem humorado, é popular e sofisticado ao mesmo tempo. Este é um desejo que surgiu quando li Marília Garcia, Alice Sant’anna, Filipa Leal e Ana Martins Marques: gosto da poesia narrativa. Talvez seja a continuação ou o contar de uma história o que me atrai como próximo desafio. Por outro lado, sempre gostei de poemas curtos. Quanto ao tema, eu ainda não sei ao certo, mas estou num ponto de inflexão na minha vida e novas reflexões não faltarão.

5. Como você se sente com as recepções que sua obra vem tendo?

Quando eu comecei a escrever eu não sabia o que queria com minha escrita e não imaginava que chegaria a publicar um livro. Eu fazia postagens de versos novos no instagram ou mostrava para pessoas mais próximas, e só quis publicar o livro quando me senti menos insegura (demorou). Pula para 2023, meu livro foi lançado em maio e tive um retorno muito caloroso da minha família e amigos num primeiro momento. Como novata, estou aprendendo os tempos do livro e me surpreendendo com o seu alcance. Gosto muito de como as leituras podem ser variadas, aprendo com cada comentário que me mandam e com as resenhas, me emociono. Adoro quando me mandam mensagens: até agora foram todas positivas. Veremos!

6. A obra possui uma divisão específica em capítulos que leva o leitor a uma abordagem metodológica em relação ao porvir, por que optou por não usar um sumário em sua obra?

Originalmente, no processo de organização do livro, quando criei as quatro partes, também criei um sumário, mas não entrou na diagramação.

7. Qual sua relação com a poesia? Por que decidiu escrever uma obra poética?

Gosto muito de contar essa história, meu contato diário com a literatura e o cancioneiro popular começou desde muito criança, eu acho que é o caso de muitos brasileiros, somos muito musicais. Digo isso porque eu acho que as rimas e as métricas da canção e como e onde ela nos toca, tudo isso foi muito importante na minha formação de poeta. Eu gostava das aulas de redação na escola, nunca abandonei a leitura, mas no mercado de trabalho só escrevia textos técnicos, e-mails e memorandos. Eu acho que meus poemas, que brotavam diariamente, surgiram num primeiro momento de uma necessidade de expressão, talvez de uma crise precoce de meia idade e de identidade, na minha condição de estrangeira morando em Genebra. Genebra é uma cidade internacional onde a gente anda de ônibus e ouve cinco ou seis línguas facilmente, é algo fascinante. Eu tinha perdido um pouco o contato com o que estava acontecendo na cena musical brasileira contemporânea antes de descobrir o programa Som a Pino da Roberta Martinelli, quem gentilmente topou assinar a quarta capa do meu livro. E quis muito que fosse assim por ela ter sido o cupido. A Roberta faz um trabalho muito lindo, ela mantém um espaço importantíssimo para artistas fora do mainstream e para nós ouvintes e amantes da música. Eu jamais tomaria conhecimento, morando longe do Brasil, de tanto repertório. Então foi mesmo um marco importante, foi quando eu passei a frequentar shows de música e voltei a escrever cada vez mais, até que decidi me matricular no curso de poesia da Universidade de Oxford. Nessa época, ainda não havia cursos à distância em língua portuguesa, muito menos de poesia.

8. Todo seu manuscrito nos leva para reflexões diárias e algumas até passageiras, qual a relação do seu emocional no ato da escrita com o resultado final da obra?

Alguns poemas que compõem o Escova de Dentes passaram por diferentes fases. Acho que sim, o emocional está presente até nesse inventar. Eu já chorei e já ri com meus próprios poemas, e ainda acontece. No início, ousava mais e era mais ingênua, e fui amadurecendo a escrita com leituras e reescrita. Nessa persistência, que durou dois anos, eu acho que consegui tirar o eu da poesia. Nos cursos discutimos a questão do distanciamento necessário para que o poema não seja sobre ou para mim mesma. Aprendi diferentes técnicas, mas não gosto de formas predefinidas e regras na hora da criação, tenho a impressão que o consciente é para reescrever, a criatividade e a loucura para criar precisam de outros recursos mentais ligados à espontaneidade e ao inconsciente, e por que não, à emoção.

9. Qual conselho daria para quem está começando seu primeiro livro?

Eu acho que participar de saraus, bate-papos de literatura, clubes do livro, cursos e oficinas, e enviar poemas para revistas e blogs independentes de literatura são excelentes oportunidades para mostrar nosso trabalho e ao mesmo tempo conhecer outros poetas e leitores de poesia. Eu uso as redes sociais e acho que funciona para ganhar seguidores e também conhecer o trabalho de outros poetas, às vezes acontece toda uma troca de dicas e de belezas. Ou seja, tirar os poemas da gaveta, revisá-los e organizá-los, circular sem medo de se expor, é um bom começo para depois publicar. Já com o manuscrito organizado, eu recomendaria fazer uma leitura beta ou crítica como parte do processo de revisão e finalização antes de mandar para as editoras. 

10. Quais são seus projetos para seus próximos livros, o que podemos esperar por aí?

Ainda não tenho projeto de livro, mas continuo escrevendo. Em maio sucumbi às tais newsletters e criei o “Poetim Frívolos Trejeitos”, um boletim poético de notícias do momento, é meu flerte com a prosa, que na verdade é um desejo de prosear com leitores. Estou começando, e aqui fica o convite para quem quiser acompanhar (vou adorar): https://crisoliveira.substack.com. Tem até uma carta pra Clarice Lispector. Além disso, meus planos até o final do ano são curtir a publicação do “Escova de dentes” e me dedicar ao estudo e prática de tradução literária.

[RESENHA #584] Cabistezas, causos do arraial, de Meri Damaceno



APRESENTAÇÃO

"Cabistezas — causos do Arraial” é obra de referência quando se pensa em resgate da memória de Arraial do Cabo. Sua primeira edição, publicada após 20 anos, nasceu de cuidadosa pesquisa empreendida pela memorialista Meri Damaceno, que passou meses à procura das histórias, lendas, personagens, linguajar típico e particularidades presentes no imaginário coletivo da cidade, outrora pequena vila de pescadores da Região dos Lagos e emancipada de Cabo Frio desde 1985. Agora o livro ganha novas cores, formas e traçados nesta reedição assinada pela Sophia, dentro da linha editorial "História, memória e patrimônio". Se constam nele registros sempre temperados com bom humor sobre bruxas, lobisomens e procissões fantasmagóricas — além de histórias sobre figuras impagáveis como Come-brasas, Fernandinho, Bôco, Bau e Tái, entre muitos outros —, é porque, parafraseando o personagem Chicó, de Ariano Suassuna, “só se sabe que foi assim”. “Cabistezas”, mais que livro, é um documento, certidão de nascimento, registro de identidade — um álbum de família de uma cidade inteira. 

Conta o pesquisador Leandro Miranda, no prefácio: "Quando li o 'Cabistezas' pela primeira vez, fiquei fascinado ao encontrar histórias e causos sobre o Cabo antigo, que vinham se perdendo ao longo do tempo. Eles foram resgatados com maestria por Meri, em um trabalho fantástico de pesquisa e entrevistas com os antigos cabistas. É importante lembrar que suas buscas foram feitas em uma época em que não havia as facilidades da internet, o que valoriza ainda mais  seu trabalho de memorialista. Ela saía com seu gravador de fita K7 atrás de rendeiras, pescadores e figuras históricas do nosso Arraial, sempre atrás de um bom causo. Assim foi construindo 'Cabistezas', como uma rendeira hábil e paciente vai trançando seus bilros."


RESENHA

Cabistezas é um livro de contos e memórias de causos da cidade de Arraial do Cabo, no Rio de Janeiro, escrito pela escritora e memorialista local Meri Damaceno, o livro foi publicado através da editora Sophia em uma reedição primorosa com novas cores, design e diagramação que separam de forma majestosa a divisão dos fatos, sendo eles:

1. Povo Cabista e suas histórias famosas;

2. Depoimentos;

3. Escreveram sobre o Arraial;

4. Curiosidades Cabistas;

5. Poesias e canções Cabistas;

6. Onde há redes há rendas;


Arraial do cabo é conhecida pelo Brasil todo por suas histórias, lendas locais, além da beleza exuberante de sua cidade. Nesta obra, Meri debruça-se à narrar os mais variados fatos e histórias que percorrem os anos da cidade, todos repletos de muita mitologia local e/o acontecimentos reais que marcaram e marcam os locais e os visitantes que buscam desbravar suas terras.

O livro se inicia com a história conhecida de um morador local chamado Quinca Félix, mais conhecido como Tenente come-brasa, tropeiro local encarregado de levar peixe salgado para as cidades da região. Em dado momento, tenente come brasa, embriagou-se e decidiu se passar por outra pessoa, enviando um telegrama à sua família narrando sua própria morte (que coisa, não?), porém, seus burrinhos acabaram levando seu corpo novamente para porta de sua casa. Esse causou ficou tão conhecido que tornou-se um poema local:

E todos prestem atenção na morte de come brasa, quando veio o telegrama direto para a sua casa, a prantinha foi tão grande, o povo não perdeu vaza, as mulheres rezando pela alma de come brasa [...] (p.36).

Todas as histórias, ou quase todas, são carregadas de simbolismo e humor, a grande maioria narra acontecimentos verídicos locais, como a história o peru de Félix (p.89). Félix era recém chegado na cidade, como não dominava a arte da pesca, Félix decidiu abrir um comércio, onde a grande maioria de seus compradores, comprava apenas fiado. As dividas eram contabilizadas utilizando grãos de milho em uma garrafa de vidro, para que assim, pudesse controlar os haveres à serem cobrados da população devedora. Certa vez, reuniu três vidros de milho e foi cobrar de um de seus maiores devedores, Jejo, que acabou por aniquilar sua dívida, quando decidiu jogar todo o milho para as galinhas, para assim, não realizar o pagamento de suas dívidas.

Félix ficou conhecido por ter levado este calote, e de alguns gringos que apareceram prometendo pagar grande quantia, porém, ao levarem o peru, o pagamento ficou pendente, e ele nunca mais viu os gringos, nem mesmo o peru.

Algumas histórias fazem parte da constituição geral da cidade, ficando marcadas pelos mais variados motivos, como por exemplo, a história do alfaiate (p.100), que era um senhor chamado Amaro, que tinha uma alfaiataria, porém, jamais conseguira vender uma peça sequer, o que lhe causou grande raiva, fazendo-o se livrar de todos seus manequins, jogando-os no mar. Alguns pescadores encontraram as nuances dos manequins no mar e pensaram ser grandes peixes. A notícia se espalhou rapidamente, causando grande alvoroço entre os pescadores que saíram em busca dos tais peixes, que jamais foram encontrados, apenas os manequins. A história não conta, mas possivelmente, devem ter causado grandes momentos cômicos locais.

A obra também desdobra-se em descrever lendas locais, algumas, extremamente chocantes que mal podemos imaginar acontecendo de forma real e palpável, como ocorre com a lenda o bicho-mamãe (p106), que narra um episódio de um filho que decidiu amarrar sua égua horas antes de ir para um baile, porém, ao notar a sede do animal, a mãe decidiu soltar o bicho, que desapareceu, causando grande raiva no filho, que decidiu usar sua mãe como égua para chegar até a festa, usando esporas em sua mãe montando em suas costas. A mãe, obviamente, faleceu com o ocorrido e amaldiçoou o filho, que como resultado, torna-se diariamente, sem descanso, um animal à correr pelas noites sem descanso, ora cachorro, ora cabra, ora qualquer coisa do tipo.

Há de se mencionar também a lenda dos porcos fantasmas (p.117), onde o povo conta que Walter, um homem que voltava à cavalo pela praia, deparou-se com porcos correndo ao seu encontro, sem conseguir correr muito, decidiu jogar uma faca ao chão, e os porcos desapareceram na hora, ele então desmaiou e acabou sendo encontrado no dia seguinte por pescadores locais.

O livro de Meri Damaceno é uma daquelas obras que figura-se como indispensável para compreensão da história local, daqueles dignos de se tornarem essenciais e indispensáveis como um monumento à se ser preservado. O livro é carregado de bom humor e histórias intrigantes acerca de histórias contadas por moradores locais, todas bastante difundidas e cercada de mistérios. A reedição da editora Sophia enalteceu esta obra ainda mais rica em detalhes e descrições. Um livro para se ler em uma única sentada.

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