Paulo Cotias responde questões sobre seu livro ''12 Lições Contra o Neofascismo''



O livro de Paulo Cotias, intitulado "12 Lições Contra o Neofascismo", mergulha fundo na análise desse fenômeno multifacetado e muitas vezes silencioso. Como historiador e especialista em educação, o autor apresenta uma abordagem clara e contextualizada, alertando para a necessidade de não suavizar a gravidade do neofascismo com eufemismos. Nas 12 lições que compõem a obra, Cotias expõe as características, estratégias e mecanismos utilizados pelos neofascistas, destacando a importância de compreender e combater esse movimento. Com uma linguagem direta e contundente, o autor lança luz sobre um tema urgente e relevante para os tempos atuais. Hoje o autor nos fala em um bate papo rápido sobre sua obra, confira abaixo:

1. Qual foi o motivo que o levou a escrever o livro "12 Lições Contra o Neofascismo"?


A principal motivação está ligada a constatação de que, apesar de algumas produções literárias e visuais sobre a temática, senti falta de algo que pudesse pensar o fenômeno do neofascismo em si. Além disso, percebi o enorme esforço (ingênuo ou deliberado), de pensadores, comunicadores e redes em suavizar e diluir o neofascismo por meio de expressões que funcionam como amortecedores , como eufemismos tais como “conservadores”, “extrema direita”, “populismo de direita”, “radicais”, “extremistas”, todos eles contendo tudo e nada ao mesmo tempo. Ou seja, para combater o que considero o pior inimigo do paradigma de civilização contemporâneo, o neofascismo, é preciso tentar compreender o que ele é, como opera, quais suas estratégias, suas ambições e seus arquitetos e colaboradores. E isso é uma necessidade urgente do nosso tempo.


2. Como foi o processo de pesquisa e elaboração das 12 lições apresentadas no livro?


Eu já havia me dedicado a escrita de livros didáticos para o ensino superior na área de história contemporânea, o que já havia prorporcionado revisitar a temática do fascismo e do totalitarismo. Aliado a isso, procurei também me dedicar a leitura de obras que operam com o tema, entender suas abordagens e contribuições. O esforço maior, no entanto, foi o de fazer o exercício desafiador de todo o historiador do seu próprio tempo, ou seja, o de buscar o máximo de fontes por meio de notícias e conteúdos não apenas que falassem do neofascismo, mas, sobretudo, o que foi produzido por neofascistas. Desse modo, a proposta desde o princípio foi adotar o estilo ensaístico, embasado, mas não propriamente um livro nos padrões acadêmicos clássicos. É uma obra para o pensamento, para discussão, para a provocação de reflexões. Um livro fundamentado, para ser lido e para servir de inspiração para outras reflexões.

3. Como você lida com a questão social em relação ao neofascismo? Você encontrou alguma barreira ao levantar questões tão pertinentes ao momento político atual?


Tenho observado com muita preocupação a capacidade de sedução que o neofascismo tem conseguido impor aos mais difentes campos como o progressismo e até mesmo a centro-esquerda. Essa receita não é propriamente nova, pois o fascismo acenara outrora para os diferentes círculos de trabalhadores, ativistas e intelectuais, dos quais captou muitos que acreditaram que teriam vantagens pragmáticas ou algum prestígio estratégico em um eventual novo regime. Tanto ontem, como hoje, os seduzidos pela política fascistóide são meros meios utilitários. A barreira que encontro é a da hipocrisia, sobretudo por parte dos que se deixaram envolver e se entregaram ao neofascismo. Eram críticos de outrora, mas que levados pelo pragmatismo do poder pelo poder, das benesses desse poder, fingem que não sabem com quem se envolvem ou o que defendem. Dão desculpas para si próprios e para as redes. Quando o fascismo foi derrotado, não foram poucos que ficaram expostos a essa vergonha.




4. Qual a importância de contextualizar historicamente o neofascismo para compreendê-lo melhor?


Isso é importante para evitar tanto o anacronismo, quanto o academicismo. Fascismo e neofascismo são experiências com datação, lugar e sujeitos históricos particulares. Porém, é necessário estabelcer o que temos de reacapitulação e o que se prolongou na longa duração do fascismo desde a sua derrota na Segunda Guerra Mundial. Foi derrotado, mas não foi deletado. E o neofascismo assume formas novas, mas trazendo aspectos dorsais dessa experiência originária. Além do mais, você só combate o que conhece. É um principio básico. E o neofascismo tem se esforçado e conseguido operar de modo escamoteado. É hora de levâ-lo à luz de dia.

Foto: Arte digital / Folha da cultura

5. Quais são os principais desafios enfrentados pela democracia atualmente para combater o avanço do neofascismo?

Um primeiro desafio é o da própria percepção do que é democracia atualmente. Em um cenário piolítico no qual ela geralmente é fixada como a “festa do voto” e amplamente confundida com um estado dispensador de serviços, é desafiador promover uma discussão capaz de recolocar a democracia como um valor indispensável. E por que? Nem todas as nações conhecidas são democráticas. Sejam de direita ou esquerda, algumas formam ditaduras abertas ou escamoteadas por eleições viciadas, além das riquíssimas nações que se projetam no cenário internacional e que possuem sistemas autocráticos ou até mesmo despóticos. O que isso significa? Que a democracia não é um valor natural e muito menos universal. Pior, seja pela globalização ou pela geopolítica, as democracias se relacionam ou até se vinculam em diferentes graus com esses outros regimes o que levanta questões muito fortes sobre a ética e os limites dessas relações. O neofascismo não tem nenhuma dificuldade de operar nesse mundo caleidoscópico, pois essa é justamente sua natureza. Sendo assim, pode muito bem defender qualquer outro regime no lugar da democracia, alegando que dará o que os seus seguidores desejam e os protegerá dos próprios inimigos por ele criados.


6. Você acredita que a conscientização e resistência democrática são eficazes para evitar retrocessos autoritários?


Sim, mas ainda vemos que os agentes políticos insistem na visão de que a conscientização é algo que se faz no movimento dos que falam para os que escutam. Isso nunca irá gerar consciência. A consciência é uma opção desejante do indivíduo que busca no que o outro produz, seja um livro, um discurso ou uma obra de cultura, os elementos que fazem com que pense, entenda e tome decisões informadas. E é ilusória a noção maniqueísta de que existe uma consciência boa ou má. Existe a consciência e ela se alimentará do cardápio que a convencer. Assim, acredito que tenhamos que ser muito melhores nas formas de ouvir, de integrar, de comunicar e de dispor as trilhas dos saberes que possam garantir que não caiamos em retrocessos civilizacionais. O pior, é que no meio dessa lide ainda temos o profundo fosso da alienação das redes, uma cultura de inutilidade a serviço das novas formas do capitalismo contemporâneo. Não é um cenário fácil.


7. Qual a relação entre a crise do Estado liberal, do capitalismo e a ascensão do neofascismo contemporâneo?

Para mim é muito simples. O neofascismo é a tábua de salvação do estado liberal capitalista. Mas não estamos aqui falando dos liberais progressistas ou dos capitalistas que advogam o bem-estar social. Falo dos ultraliberais que desejam libertar-se completamente de qualquer limitação legal na sua capacidade de ampliar seus lucros e, para tal, precisam controlar definitavamente o estado. Para isso, atacam o estado em suas fragilidades, tentando convencer a opinião pública de que ele é algo unicamemente ruim, caro, ineficiente, perdulário, corrupto e que, para reverter isso, é preciso impor uma mentalidade e uma prática privatista, uma gestão pela eficicência a qual eles, os ultraliberais, se vendem como os unicos portadores e operadores. Na prática isso significa desregulamentar o trabalho aos limites da informalidade, fazer com que os ricos continuem a não pagar impostos ou que paguem ainda menos do que já pagam, que a riqueza continue concentrada, que o rentismo transforme as relações econômicas em um grande cassino especulativo. O povo trabalhador compra esse discurso pois ele é muito bem vendido e massificado. Conclusão, continuará sem os serviços sociais fundamentais, trabalhará cada vez mais em regimes de exploração acentuados, com menos proteação e tendo cada vez menos valor como cidadão. O neofascismo abre mão do controle econômico desde que este permita e sustente a casta ideológica e a casta corrupta no castelo alto que desejam estar. Desde que os ultraliberais concedam os recursos para as ementas, para os propinodutos, para os arranjos e combinações e que continuem pagando os mais diversos canais para propagar que todo esse ambiente de corrupção não existe ou só existiu no passado, eles podem fazer o que quiseram com o erário e com o povo. É um modelo de rapina.

8. Como você enxerga a participação pública no desenvolvimento e propagação de ideias autoritárias?


O debate público está posto em premissas falsas. Fala-se em uma polarização entre nomes, o que apenas interessa aos próprios nomes que estão nos polos da contenda e seus respectivos aliados. Acreditamos na falácia de que o país está dividido em dois, quando na verdade há uma movimentação muito mais complexa em curso. O neofascismo se aproveita desse clima de “nós e eles” para arregimentar cada vez mais adeptos e, para chegar aonde deseja, basta convencer uma maioria simples, vencer as eleições e ter os meios para construir uma opinião pública e comprar a bom preço os meios políticos para desmanchar impunemente as instituições que sustentam o estado democrático de direito. Não se fala em neofascismo. Quanto mais o debate público for um jogo de ataque e defesa e sobre temas pautados pelo neofascismo, ou seja, como mera posição reativa, não vamos avançar. Pelo contrário. Isso sem falar que há um fenômeno muito complicado também em curso que é o decolamento da escolaridade e do conhecimento. Nunca tivemos tantos formados e titulados cuja relação de produção e comprensão do conhecimento fosse tão limítrofe. Somado ao espaço das redes que estimulam, endossam e ressoam os “especialistas” de ocasião, com opiniões ou demonstrações de virtude aparente vazias e temporarias.


9. Quais são suas perspectivas em relação ao futuro, a política atual o avanço velado do neofascismo?

Não muito otimista. Há chances reais e sólidas dos neofascistas ampliarem seus espaços de poder e enraizamento nesse ano, pavimentando a ampliação e retomada do poder total em 2026. Por outro lado, quem são as novas lideranças capazes de construir pontes e levar o debate público de volta à rota da civilidade, do progresso, do desenvolvimento e da justiça social? Quais grupos estão se dedicando a qualificar o debate público? O que se vê é meramente um culto à personalidades. Há também muitas questões que estão se tornando perigosamente irreversíveis como a captura da política pelo centrão, o envolvimento dos poderes com a criminalidade, a corrupção e a impunidade institucionalizada pelos próprios pares políticos. E todos esses aspectos não são estranhos ao neofascismo.


Foto: Sophia Editora / Divulgação

10. Quais produções literárias inspiraram a escrita do seu livro? Houve algum?

Autores como Umberto Eco com o seu “Fascismo Eterno”, “Fascismo à Brasileira” de Pedro Dória, “Anatomia do Fascismo”, co Paxton e outros autores que gosto bastante e incorporo nas minhas reflexões como Byung-Chul Han, Hobsbawm, Daniel Arão, Yuval Harari, entre outros.

11. Se você pudesse mudar algo no mercado editorial brasileiro, o que seria?

Creio que um grande gap que observo é o da ponta, ou seja, o como o livro enquanto bem de consumo está ou não acessível. É assustador que tenhamos tantas livrarias fechando e espaços literários como cafés e similares estejam lutando para sobreviver. As bibliotecas no Brasil são pavorosamente escassas e mal estruturadas, salvo honrosas excessões, além das salas de leituras nas escolas que, geralmente, são arremedos, remendos de um espaço literário improvisado em todos os sentidos. Falta campanhas de incentivos, tirar essa pecha de que leitura é uma prática obsoleta. Os preços também acabam afastando e elitizando o hábito. Enquanto rolar feed não custa nada, comprar um ou mais livros é algo que pesa no orçamento da maioria das famílias. Não é que o livro seja caro, a distribuição da riqueza no país é que é vergonhosamente desigual e precarizante.


12. Qual sua dica para quem está iniciando o primeiro livro?


A escrita é um processo orginal e isso é o mais importante. É claro que há parâmetros como os de cada estilo, assim como a escrita acadêmica que tem as suas regras próprias, mas o importante é que possamos nos dedicar com muito zelo e cuidado em cada etada da construção. Outra coisa muito importante é a de não se deixar levar pela vaidade e pela ansiedade. Hoje, há muitos grupos que atendem pelos nomes de “academias”, “confrarias” e coisas do gênero que se transformaram em máquinas de fazer dinheiro produzindo medalhas, diplomas e “honrarias” em troca de “taxas de chancelaria”. Na prática, o autor acaba comprando esse “reconhecimento” e isso não tem nada a ver com a qualidade da sua obra ou o seu talento. Então, um conselho precioso, o livro pode ser lido por uma pessoa ou por milhões, o importante é que haja verdade tanto na escrita quanto na leitura e isso não se mede só pelo quantitativo. Já o sucesso é uma engenharia complexa e depende de fatores que vão muito além do talento. Por isso, é importante ter paciência e, caso deseje se tornar um escritor profissional, é necessário estudar e conhecer esse meio, como em qualquer profissão.



13. O que podemos esperar de seus próximos livros?


O projeto é a realização de uma trilogia. O próximo, que já estou escrevendo, será dedicado ao tema da liberdade e o terceiro vai se dedicar a cidadania. Todos terão o mesmo formato e proposta das 12 Lições.

Resenha: Limpa, de Alia Trabucco Zerán

Foto: Arte digital

 APRESENTAÇÃO

Neste romance baseado em um crime real e construído de forma circular — ele começa no ponto em que termina —, Estela está presa em uma sala de interrogatório policial para esclarecer a morte de uma menina a seus inquiridores. Anônimos, eles estão separados da protagonista por um vidro opaco, tal como ela era apartada da cozinha por uma porta translúcida no quarto dos fundos da casa onde vivia como empregada doméstica e babá.


RESENHA


Em Limpa, Alia Trabucco Zerán explora o terror psicológico por meio da história de Estela Garcia. A protagonista narra, inicialmente ao telefone, uma tentativa desesperada de se libertar de um local desconhecido. Durante sua reflexão, ela relembra as mortes que causou em sua vida, incluindo a de animais. Estela discute a inevitabilidade da morte e as motivações por trás de cada ser vivo encontrar seu fim. No desenrolar da trama, revela-se um pedido de ajuda para uma garota que Estela possivelmente auxiliou em sua morte, ao sugerir uma ideia que a levou a seu fim trágico.


E há uns quantos, como a menina, que precisam apenas de uma ideia. Uma ideia perigosa, afiada, nascida num momento de fraqueza (p. 11)


A história começa com Estela respondendo a um anúncio de emprego que solicitava uma empregada em tempo integral e com boa aparência. Em seu primeiro dia de trabalho, ela foi recebida pelo casal de patrões, com ênfase na esposa grávida que examinou minuciosamente sua aparência. Enquanto a esposa estava atenta aos detalhes, o marido parecia indiferente e até se mostrou nu diante da empregada em um momento inesperado. Apesar de sua falta de experiência com crianças, Estela foi contratada e recebeu instruções detalhadas sobre suas responsabilidades naquela casa aparentemente luxuosa. Enquanto explorava a residência, Estela teve um pensamento perturbador sobre a natureza da casa, o que a deixou desconfortável.


Durante a entrevista, a Estela não foi mostrada ao "quarto dos fundos", mas viu-o pela primeira vez no seu primeiro dia de trabalho. O quarto era simples, com uma cama, mesa de cabeceira, cómoda e televisão. Ela sentiu uma estranha sensação ao entrar no quarto, como se estivesse a observar a sua própria transformação. Ela trabalhou para um casal, com a senhora Mara e o Dr. Juan Cristóbal Jensen. Mara era distante e fria, enquanto o Dr. Jensen era obcecado pelo tempo e pelo seu estatuto de doutor. Ela foi inicialmente tratada pelo nome da empregada anterior e sentiu-se como uma estranha naquela casa.


Estela descreve o nascimento da menina Julia e o momento em que ela cuida da criança pela primeira vez. Mara, dona da casa, estava exausta e pediu à Estela, para cuidar da criança. Estela se sente desconcertada com a fragilidade de Julia e a novidade de cuidar de um recém-nascido. Ela limpa, veste e acalma a criança, refletindo sobre a vida e o silêncio. Ela então se sente perdida e paralisada ao vigiar Julia dormir, sem conseguir distinguir o carinho do desespero.


Numa manhã, ao iniciar o dia, uma nova empregada doméstica toma um duche e se veste para o trabalho. Ao chegar à cozinha, encontra um recado na porta da geladeira, indicando alguns itens a comprar no supermercado. Ao sair para fazer as compras, ela se depara com uma mulher idosa semelhante a si mesma, o que a perturba. Durante o percurso, ela se sente seguida e começa a ter sensações estranhas, perdendo a noção da realidade. A experiência a deixa desconfortável e confusa, levando-a a se questionar sobre sua identidade e realidade.


A menina rapidamente cresceu e começou a falar, dizendo a sua primeira palavra, "bá-bá", que era como a babá era chamada. Mara, a senhora, tentou desviar a atenção dela de uma tragédia na televisão, mas a menina continuou a insistir, causando desconforto. A senhora acabou mentindo para o marido, dizendo que a primeira palavra da menina foi "mamã".


Durante a noite, Estela presencia uma cena explicitamente sexual entre os patrões enquanto vai buscar água na cozinha durante a noite. Ao ser descoberta, ela foge para o quarto, sentindo-se perturbada e com sede. A cena a deixa agitada, e ela se masturba para tentar acalmar o desconforto causado pelo que presenciou. Os dias passam e Estela é confrontada com sua realidade e ética após flagrar a patroa traindo o marido e gerando um atrito para ambas, este episódio culminou na quase desistência de Estela ao trabalho, mas ela havia prometido ajudar sua mãe com o salário, então ela engoliu o orgulho e permaneceu na residência do casal. 


Estela em um momento de divagação, reflete sobre uma história sobre a figueira do pátio das traseiras e como a morte iminente da árvore se relaciona com a morte que está prestes a acontecer na família, ela reflete sobre a inevitabilidade da morte e como os sinais de que algo está prestes a acontecer estão sempre presentes na atmosfera da casa. Ao limpar os figos caídos da árvore, se deparando com a realidade da morte e a certeza de que a vida tem um ciclo que inclui o princípio, o meio e o fim. 


Estela recebe a visita inesperada de sua prima Sonia, que anuncia a morte repentina de sua mãe. Sonia explica que um homem desconhecido, colega de trabalho da mãe, havia cuidado do enterro. Estela não sentiu nada com a notícia, apenas ficou atordoada. Sonia pediu ajuda financeira e partiu. Depois da morte da mãe, Estela entrou em um silêncio profundo, sem intenção de comunicar. Mesmo realizando tarefas diárias, ela deixou de falar e se isolou, percebendo que as palavras têm uma ordem necessária enquanto o silêncio permite todas as palavras ao mesmo tempo. Com o tempo, seu silêncio se tornou poderoso, até que uma tragédia aconteceu: a menina afogou-se, mesmo sabendo nadar. 


Estela divaga por um momento relembrando de um episódio que aconteceu quando Juan retornou de seu turno de trabalho e lhe falou até às sete da manhã. O senhor, visivelmente perturbado, abre-se sobre um encontro com uma mulher em um hotel, que acaba revelando um caso de infidelidade, enquanto permanece narrando o episódio de falecimento de uma paciente de sete anos durante os meses finais do curso de medicina, aos quais, manteve em segredo por mais de vinte anos.  Nesse dia, o senhor ficou na cama com febre e tosse, fechando-se no quarto para ver as notícias. Pediu um consomê no almoço e a empregada, Estela, tentava não olhar para ele. Enquanto isso, uma vendedora ambulante gritava na rua. À noite, Estela ouviu um assalto em andamento na casa, com os ladrões revirando tudo em busca de dinheiro e joias. A polícia chega algumas horas depois de um assalto à casa. O senhor da casa não revela todos os detalhes do roubo, mas a senhora fala por eles. Durante as semanas seguintes, o senhor fica obcecado com a ideia de se proteger, chegando mesmo a comprar uma pistola. Enquanto fazia uma limpeza, a empregada encontra a pistola escondida e decide guardá-la consigo. Ela reflete sobre a certeza da morte e a sensação de poder que a arma lhe dá, guardando-a debaixo do colchão no quarto dos fundos.


Guardei a pistola dentro do lenço e quando ia pô-la no lugar onde devia ficar escondida, arrependi-me. E levei-a comigo, foi isso. Levei a pistola para o quarto dos fundos e guardei-a debaixo do colchão. Não fosse um dia, ou uma tarde, ter vontade de responder a essas duas perguntas: como e quando


Após um evento traumático na casa, Estela é demitida e recebe um cheque de um mês como compensação pelo mês trabalhado, até encontrar um novo trabalho. Em seu último dia de trabalho, Estela observa da cozinha, enquanto prepara um último chá antes de partir, o corpo da filha do casal, Júlia, boiando sob a piscina - ela estava morta.


Fiquei a olhar para ela, à espera de que acordasse. Não acordaria. As memórias gravadas na sua mente desapareceriam com ela e eu também, porque eu era uma dessas memórias. Não sei o que senti. Nem tem importância. Mas interroguei-me se por acaso sentiria falta das suas canções, das suas corridas no corredor, do seu constante desespero.


A história se finaliza com Estela saindo pela porta da frente e acordando em um local desconhecido tentando contato através do telefone de forma desesperada em busca de auxílio.


Limpa, de Alia Trabucco Zerán, é um mergulho profundo no terror psicológico através da história de Estela Garcia. A narrativa intricada e envolvente da autora nos leva a questionar a natureza da vida, da morte e das relações interpessoais de forma intensa e emocionante. Os personagens são complexos e cheios de camadas, tornando a história ainda mais cativante. A escrita de Zerán é envolvente e impactante, levando o leitor a refletir sobre temas profundos e perturbadores. Uma obra que certamente ficará na mente do leitor por muito tempo após a leitura.

Resenha: O homem que explodiu o presidente, de Thiago Barrozo

Foto: Arte digital

APRESENTAÇÃO

Um ex-professor, ex-alcoólatra, ex-pai de família.Um homem atormentado pelo passado encontra num bilhete de loteria premiado a oportunidade de vingança que sempre almejou. Seu algoz? Ninguém menos que o Presidente da República. Uma jornada arriscada onde uma prostituta suicida, um amigo sem memória, um advogado assassino e um traficante vaidoso embaralham os conceitos de certo e errado; onde a morte não é a última das consequências, mas, sim, o início de um longo caminho. Afinal, como bem disse Shakespeare, é a tentativa, e não o ato, o que nos aniquila.


RESENHA

A obra o homem que explodiu o presidente é uma obra de ficção escrita por Thiago Barroso, publicado pela editora flyve. O enredo se inicia com um enunciado provocante, sobre como o personagem, Otelo, matou o presidente e a si próprio usando explosivos, ele documentou tudo de forma antecipada em fitas de audio documentadas em um estojo de alumínio dentro da gaveta de uma mesa.


Bom, se você está ouvindo esta gravação é porque encontrou as fitas no estojo de alumínio dentro da gaveta da mesa. Elas estão numeradas e é melhor escutá-las na sequência. Você pode ouvir fora de ordem se quiser, mas garanto que vai ser mais difícil desse jeito.


Otelo narra que sua jornada começou após ter ido comprar uma roupa de presente para o aniversário de seu amigo, Celembra, no brechó de Maria Flor, onde, por coincidência, encontrou um bilhete premiado da mega-sena e um cartão com um número rabiscado. 


Se tivesse escolhido o outro botão, jamais encontraria o comprovante da Mega-Sena. Nem o com-provante, nem o cartão com um número de telefone rabiscado à mão.


Otelo esconde um passado acerca de um acidente que ocorrera consigo, sobretudo, com seu amigo Celembra, que sofreu com um linchamento que o fez desenvolver uma amnésia retrógrada.


Hoje ele é uma espécie de irmão mais novo pra mim, mas houve um tempo em que ele entendia das coisas. Um tempo em que o Pátio do Colégio era nossa casa e ninguém me chamava de Otelo, Eu era simplesmente "o Novato". Você nunca esquece a primeira noite na rua. O frio da madrugada, o movimento das sombras, a superfície áspera da calçada. Leva um tempo até você fechar os olhos e conseguir relaxar. Um tempo ou uma garrafa de Corote - o que seu corpo absorver primeiro.


Após confirmar os números do bilhete, Otelo, decide procurar pelo dono da camisa para descobrir quem era o ganhador do bilhete premiado, porém, Dona Flor não conhecia o proprietário doador da camiseta, o que o fez tomar partido e ligar para o número que estava junto ao bilhete. Quem atendeu ao número foi Vivian, uma mulher grávida com pensamentos suicidas que estava em um envolvimento com Robson, o dono do bilhete, que, não por coincidência, estava desaparecido desde sua viagem à Itália. Vivian vivia escondida a mando de Robson para se proteger dos inimigos que ele fez, sobretudo, de um homem chamado Salvatore. Otelo então decide reencontrá-la outras vezes até levá-la em uma das suas visitas para casa de Dona Flor, dizendo-a ser sua prima.


Em uma noite, Dona Flor e Otelo assistem ao fantástico e veem uma notícia acerca da morte de Robson no exterior, onde Vivian deseja a morte de Salvatore. Otelo e Salvatore não se conheciam de fato, eles apenas se envolveram em um acidente de trânsito, onde ele e o até então, senador, Fernando Messias Cardoso, que dirigia sozinho um Pajero blindado preto quando bateu contra o Ford Ka vermelho de Otelo após ser flagrado dirigindo bêbado. O acidente ocasionou em Otelo ferimentos graves na cabeça, mas não em punições para o senador, levando em consideração que ele teve Salvatore como seu advogado na defesa, o que o fez sair ileso. Este acontecimento foi o primeiro ponto para Otelo desejar a morte de Fernando Messias Cardoso, pelo menos até o segundo momento em que Robson fora morto, deixando Vivian desamparada e grávida.


Após todos estes acontecimentos, ocorre na história outros desdobramentos que fazem a narrativa ganhar forma visceral. A forma como o autor trabalhou o desejo de vingança, de Otelo, seu passado, a história de Robson e Vivian, a relação de afeto e cumplicidade de Celembra, Dona Flor, Bira e o Francês são pontos fortes na narrativa, eles são responsáveis por amenizar os acontecimentos e desenhar contornos entre os conflitos, o que torna a história mais palpável, mais próxima da realidade. O mais impressionante no enredo é, que, saber que Otelo mata o presidente nas primeiras páginas e a arma do crime, não influenciam em nada na história, apenas torna-a melhor, alimentando a curiosidade do leitor em desbravar cada uma das fitas para entender todos os percursos de Otelo até a consumação. Uma história instigante e cativante, difícil não ler.

5 Poemas de Sanchez

Sanchez, poeta paulistano talentoso e promissor, vem conquistando seu espaço na cena literária brasileira com seus versos visceralmente sinceros. Com poemas publicados em renomadas revistas literárias do país e participação na equipe de poetas do portal Fazia Poesia, Sanchez cativa seus leitores com sua sensibilidade e sua habilidade única de transmitir emoções através das palavras. Em seu livro de estreia, "dentrofora", lançado em 2023 pela editora Laranja Original, o autor nos presenteia com um mergulho profundo em sua alma poética, revelando a força e a beleza de sua escrita. Confira a seguir alguns dos poemas que compõem essa obra marcante.


estalo bissexto

existe um ponto cego em nossa cegueira,

clareira na geleia espessa de

cada dia:

encontrar aquilo no limiar

entre o livre

e o inútil.

compromissos imaginários circulados

no calendário do ano passado, futuro

confinado a folhas amareladas, futuro

realizado no passado, futuro que, mesmo

assim, não deixa de ser futuro.

o uso não usual, a função não funcional,

a criação – pois criar é sempre se prestar

a fazer o que não presta:

fatiar o fato após o fato,

a foi-se na folhinha.



esconde-esconde

pureza do eu?

eu puramente cindido.

o eu cria a si mesmo

ensimesmado no olhar do outro.

pureza de língua?

língua puramente variada.

o sentido fixado à página

asfixiado pela palavra.

pureza da arte?

arte puramente refratária.

o arquétipo canonizado

destruindo todo o cânone.

pureza?

mas pra que coisa pura se pureza não para

em lugar nenhum?



oásis

entre a memória e o poema,

papel.

traços se alvoroçam sobre a

página intacta buscando a

centelha do agora quando

já é tempo de depois.

frenético delírio sígnico.

traças se esbarram ao redor da

ideia luminosa criando uma

camada entre o ideal memoriado

e o possível corporizado.

frustrante metamorfose fabricada.

entre a memória e o poema,

deserto.

carcaças se acumulam ao longo

da areia erguendo o emblema

ambíguo de morte-alimento e

vida-sanguessuga.

decadente memória decomposta.

carcará se esconde na duna

aguardando a morte da presa

que definha e busca a

salvação.

derradeiro espetáculo cadavérico.

entre a memória e o poema,

muro.

escrever é esmurrar os tijolos.



fantasmagoria

um cheiro que não é

mais cheiro, é lembrança

enlameada.

um lugar que não é

mais lugar, é fotografia

despedaçada.

cheiro seu, lugar ao

seu lado, absurdo:

coisa que é coisa

deixando de ser coisa

por ter sido coisa com

você.

de supetão,

soterrada

em silêncios,

sua sombra

é sublimada.

você

se

tornou

resquício.



falsa coral

língua traiçoeira conduz ao

tropeço em cada duplo sentido.

língua escorregadia atrai para o

beijo com os dentes escondidos.

língua de cobra

bifurcada

entre fala e

carne,

duas línguas em comunhão

na palavra língua.

guardo a palavra aguardando

a picada como quem já

mordeu a língua e se

viciou no veneno.

toda língua é língua de cobra.

Resenha: A forma do fogo, de Felipe Rodrigues

Foto: Arte digital

A forma do fogo é um livro de poesias escrito pelo poeta e advogado Felipe Rodrigues. A obra se inicia diretamente com o sumário, essa escolha pessoal do autor em não utilizar uma introdução, prólogo, nota de abertura ou semelhante é uma característica distinta que evoca no leitor a necessidade de aprofundar nos escritos de maneira mais verossímil, com mais afinco, o que denota a possibilidade de andar pelos degraus dos sentimentos presentes em cada linha de forma mais nivelada, possibilitando uma compreensão mais assertiva dos fatos, o que claro, torna a leitura mais instigante, causando um sentimento de inovação do contexto em relação as expectativas dos caminhos descritos e propostos pelo autor. Outra análise possível é o fato do fogo não ser contido, controlado, por suas chamas ascenderem de forma instantânea dentro de seus limites da existência, ardendo. Este arder das chamas provoca uma reflexão latente acerca dos temas abordados, como se o medo, angústia e os demais sentimentos queimassem o interlocutor, em outras palavras, é um texto sobre tudo o que destrói o ser humano, como as chamas de um incêndio.


A obra consta com 95 poemas ao todo, um marco em uma publicação deste gênero, o que torna o mix de assuntos laborados mais diverso, tornando a esfera da leitura uma experiência agradável para todos os públicos. Estruturado em estrofes com ora rimas, ora formas fixas, a obra possui características descritivas e estruturais únicas que modificam-se a cada novo poema, revelando desta forma, uma nova estética de se reinventar por meio de características singulares entre as emoções destacadas.


Analisando temas como sentimentalismo, amor, esperança, solidão, ânsia, âmago e outros tópicos, o autor nos convida a refletir acerca de nossa existência e de tudo o que cerca nosso redor, como descrito no poema abaixo:


a doença da liberdade

Ansiedade é a doença da

Liberdade.

 

Menos infeliz quem,

Não sabendo que não pode ser,

A não ser, infeliz

Do que quem a crê e a vê

Em todo lugar, a todo instante

E perde-se no oásis de escolhas

Em meio ao deserto de sentido,

Ficando triste, doente, ansiosa

Esquecendo o que, lá no íntimo único,

Era e queria de verdade.

 

Multiverso, metaverso,

Relacionamentos abertos,

Fé, a falta ou excesso de Deus ou heróis,

Imagens e governantes,

Ideias, discursos e narrativas

Contra "eles",

Sobretudo vidas e coisas tão longe de mim!

 

Tantas formas de vida para escolher

No tempo tão curto de viver!

 

Ah, liberdade, liberdade...

Quando quase tudo é possível

Mas quase nada convém.

O poema aborda a liberdade como uma fonte de ansiedade e doença na sociedade contemporânea. Ele reflete sobre a ideia de que, apesar de termos a liberdade de escolha em diversos aspectos de nossas vidas, essa liberdade pode nos levar a uma sensação de desorientação, falta de sentido e insatisfação, destacando a pressão da sociedade moderna para fazer escolhas em todas as áreas da vida, desde relacionamentos até crenças religiosas e políticas. Isso cria um sentimento de estar perdido em meio a tantas opções e expectativas, levando à infelicidade e ansiedade.

A liberdade é retratada como algo paradoxal, em que quase tudo é possível, mas quase nada realmente é satisfatório. Isso sugere uma reflexão sobre as consequências da liberdade excessiva, levando as pessoas a perderem de vista suas verdadeiras vontades e desejos.

Dessa forma, o poema aborda a liberdade sob uma perspectiva sociológica, explorando como as pressões sociais e as expectativas da sociedade contemporânea podem afetar nosso senso de identidade, propósito e bem-estar. Ele levanta questões sobre como lidamos com a liberdade e as escolhas que enfrentamos, e como isso pode contribuir para sentimentos de descontentamento e doença.


Seguindo com os poemas:


a dança das estrelas

O meu saber dos astros não alcança

O imprevisível andar das tuas cenas

O acerto e o erro em ser, com os pés na dança

Do que é teu e somente teu, apenas.

 

Contigo o mau futuro não me cansa

Quando envolvido em tuas mil morenas

O meu saber dos astros tem confiança

No pleno ajuste das coisas terrenas...

 

Por mais que os astros girem sobre nós

Contando confidências, e tramando

O alegre e o triste na pequena noz

 

Satélite inexato, eu sempre aéreo

Ciência ou religião... Nunca a alcançando

Flor astral, esotérico mistério.


Sob uma perspectiva sociológica ao explorar conceitos como individualidade, liberdade e destino, o poeta descreve a dança das estrelas como algo imprevisível e incontrolável, refletindo a ideia de que cada indivíduo tem seu próprio destino e caminho a seguir. Além disso, o poema sugere que o conhecimento dos astros pode oferecer alguma segurança, mas que, no final das contas, somos responsáveis por nossas próprias ações e escolhas. Isso pode ser interpretado como uma crítica à ideia de determinismo social ou à influência de forças externas sobre nossas vidas. Ao falar sobre o envolvimento com "mil morenas" e o aclaramento das coisas terrenas, o poema também pode ser interpretado como um comentário sobre a interação entre o indivíduo e a sociedade. A ideia de estar imerso em um contexto social, mas confiante em suas próprias decisões, sugere uma abordagem individualista em relação à vida. Em última análise, o poema aborda questões de destino, liberdade, confiança e mistério, que são temas sociais e filosóficos importantes que permeiam a vida de todos nós.


silêncio

Por muito tempo temi a solidão

E refugiei-me, como vocês,

No incessante e colorido mundo exterior

Onde, ansioso,

Refletia cores alheias para o vazio de meu coração,

Coroava meu céu com brilhantes, inseguras estrelas

Enquanto tempo era-me roubado

Para que eu me esquecesse de mim.

 

Mas de tanto estar ausente

Perdi o medo da solidão - ou da liberdade,

Do julgamento também,

E agora reconheço-me em mim, em silêncio,

Como reencontrando um velho amigo desencontrado

Na roda do tempo, no sem sentido da vida,

E comigo sou e comigo estou

Na mais serena e autêntica paz.

O poema “Silêncio” pode ser interpretado sob uma perspectiva como uma reflexão sobre a condição humana na sociedade moderna. O eu lírico expressa inicialmente um medo da solidão, que é uma experiência comum em um mundo onde as relações sociais podem ser superficiais e efêmeras. A busca por refúgio no “mundo exterior” e a tentativa de se encaixar, refletindo “cores alheias”, pode ser vista como uma crítica à conformidade social e à perda da individualidade.

A solidão, muitas vezes vista negativamente, é reavaliada pelo poeta como um espaço de liberdade e autoconhecimento. A ausência de julgamento externo permite uma introspecção profunda, onde o eu lírico encontra paz e autenticidade. Isso pode ser interpretado como um comentário sobre a importância da autonomia e da identidade pessoal em uma sociedade que valoriza a extroversão e o desempenho social.

O “reencontro com um velho amigo desencontrado” simboliza a reconexão com a essência do ser, muitas vezes perdida na “roda do tempo” e no caos da vida cotidiana. O poema termina com uma nota de serenidade, sugerindo que a verdadeira paz vem de estar em harmonia consigo mesmo, além das expectativas e pressões sociais.


O PERSEGUISSONHO


Se tenho sonhos?

Não sei se os tenho ainda,

Mas sei que os tinha...

Se persigo meus sonhos?

Persigo, sim,

Perseguissonho de outras pessoas.

Mas não sei se são reais

- Esses sonhos e essas pessoas -

Porque eu mesmo não sonho

E não tenho nada de absolutamente tão claro

A viver e morrer por, a sonhar!

- Tenho sim objetivos:

Não sou preguiçoso, apenas não sou sonhador...

A vontade vacila, sempre.

Não consigo “Viver o presente...”

Nem uns sonhos próprios, inexistentes.

Mas gostaria de reencontrá-los

Assim, como por acaso,

E que me perdoassem...

Porque o perseguissonho persegue-me

Numa sensação de desperdício

Do tempo e da força que ainda me restam

Para viver e só viver,

Mas nada sonhar...


O poema “O PERSEGUISSONHO” apresenta uma reflexão profunda sobre a condição humana na sociedade contemporânea, especialmente no que tange à perseguição de sonhos e objetivos. Do ponto de vista, o poema pode ser interpretado como uma crítica à pressão social para que se tenha ambições e sonhos claramente definidos, o que pode levar a um sentimento de inadequação e perda de identidade.


O eu poeta revela uma luta interna entre a expectativa social de ter sonhos e a realidade de não possuir nenhum que seja genuinamente seu. A sociedade muitas vezes valoriza aqueles que têm grandes aspirações e desvaloriza os que não se encaixam nesse ideal. Isso pode gerar uma sensação de alienação e de estar vivendo através dos sonhos de outros, o que o poeta chama de “Perseguissonho”.


A vontade que “vacila, sempre” pode ser vista como a incerteza e a inconstância que muitos enfrentam ao tentar se conformar com as normas sociais. A dificuldade em “Viver o presente” pode refletir a ansiedade e a pressão para planejar o futuro, muitas vezes à custa de apreciar o momento atual.


O desejo de reencontrar seus sonhos “como por acaso” sugere uma esperança de redescobrir uma paixão ou propósito perdido, livre das imposições sociais. O poema termina com uma expressão de resignação, onde o eu lírico aceita a perseguição dos sonhos como uma parte inevitável da vida, mesmo que isso signifique não ter sonhos próprios.


A obra "A forma do fogo" de Felipe Rodrigues é uma verdadeira obra-prima da poesia contemporânea. Com uma linguagem poética única e uma profundidade emocional que envolve o leitor, o autor nos convida a refletir sobre temas universais como liberdade, solidão, amor e identidade. Cada poema é uma janela para o mundo interior do poeta, revelando uma sensibilidade única e uma capacidade de expressão que toca o coração de quem lê.


Os temas abordados nos poemas, como ansiedade, liberdade, solidão e busca por identidade, são extremamente relevantes para a sociedade contemporânea, refletindo as angústias e as contradições do mundo moderno. A maneira como o autor explora esses temas, com uma sensibilidade aguçada e uma linguagem poética envolvente, faz com que o leitor se identifique e se emocione com as palavras do poeta.


Em suma, "A forma do fogo" é uma obra que transcende as barreiras do tempo e do espaço, tocando o âmago do leitor com sua beleza e profundidade. Felipe Rodrigues é uma voz poética que merece ser ouvida e apreciada, e sua obra é um verdadeiro tesouro da literatura contemporânea. Recomendo fortemente a leitura deste livro a todos os amantes da poesia e da beleza das palavras.

Resenha: Os anos, de Annie Ernaux

Foto: Arte digital

APRESENTAÇÃO

Uma das principais escritoras francesas da atualidade, Annie Ernaux, empreende neste livro a ambiciosa e bem-sucedida tarefa de escrever uma autobiografia impessoal. Com ousadia e precisão estilística, ela lança mão de um sujeito coletivo e indeterminado, que ocupa o lugar do eu para dar luz a um novo gênero literário, no qual recordações pessoais se mesclam à grande História, numa evocação do tempo única. Nascida em 1940, em uma pequena cidade no interior da França, Ernaux pertence a uma geração que veio ao mundo tarde demais para se lembrar da guerra, mas que foi receptora imediata das recordações e mitologias familiares daquele tempo. Uma geração que nasceu cedo demais para estar à frente de Maio de 68, mas que ainda assim viu naquelas manifestações a possibilidade dos mais jovens de uma liberdade que por pouco não pode gozar. Finalista do International Booker Prize e vencedor dos prêmios Renaudot na França e Strega na Itália, Os anos é uma meditação filosófica poderosa e uma saborosa crônica de seu tempo. Pela prosa original de Ernaux, vemos passar seis décadas de acontecimentos, entre eles a Guerra da Argélia, a revolução dos costumes, o nascimento da sociedade de consumo, as principais eleições presidenciais francesas, a virada do milênio, o 11 de Setembro e as inovações tecnológicas, signo sob o qual vivemos até hoje.


RESENHA


Em 'os anos', Ernaux utiliza suas memórias e fotografias pessoais para evocar não apenas sua própria vida, mas também o contexto histórico em que ela está inserida. Ela discute a influência dos grandes acontecimentos históricos na formação das identidades individuais e coletivas ao longo do tempo. Além disso, reflete sobre a importância dos objetos, gestos e hábitos do cotidiano na transmissão da memória e na construção da História. A obra também aborda as transformações sociais, culturais e tecnológicas ao longo do século XX e como elas impactam a maneira como as pessoas se relacionam com o passado e se projetam para o futuro.

Ao elaborar uma construção grandiosa, Ernaux, nos convida à refletir msobre o peso da história atual sobre a vida individual e coletiva, com o poder das memórias, o apagamento histórico das emoções, a centralidade do indivíduo em relação ao tempo e o exercício cunhado das experiências vividas. Comunismo, pós-guerra, eleições e demais acontecimentos históricos demarcam um caminho sem volta: o da vivência. Em uma biografia impessoal, a autora transmite em suas linhas uma série de raciocínios lógicos para eternizar suas memórias de alguma forma, certa, que, o tempo o apagará inevitavelmente como em "todas as imagens vão desaparecer (p.7) e essa é a única certeza que temos, como diz Tchékhov na introdução da obra em "seremos esquecidos [...] pode parecer também que esta vida de hoje à qual nos agarramos seja um dia considerada estranha".


Para Ernaux, as fotografias são elementos centrais na construção da narrativa de Os Anos, como expresso em diversos pontos, sobretudo, "é uma foto sépia, em formato oval, colada dentro de uma caderneta com a borda dourada, protegida por uma folha transparente com relevo" (p.15). Ela utiliza essas imagens e eventos comunitários para representar a ideia de coletividade e experiência partilhada. O livro não é apenas a história pessoal de Ernaux, mas sim um meio de explorar preocupações mais amplas e encontrar pontos em comum com os leitores. O objetivo do trabalho é abordar a realidade de forma fiel, mesmo sabendo que a influência das nossas mentes, crenças e percepções sempre estará presente. Na sociedade contemporânea, a memória está sendo apagada devido à valorização do presente e ao desnivelamento do registro do agora com o passado. As fotografias se tornam cada vez mais importantes, permitindo manter os seres vivos distantes e driblar o passado, que se conserva nos álbuns e prateleiras. A ilusão de domínio do passado e permanência no futuro dificulta a consciência do presente, essencial para a formação de memórias. As coisas tomam o lugar dos momentos, e as pessoas são dominadas pela duração dos objetos.


O livro Os Anos está localizado na fronteira entre literatura, história e sociologia. A experiência de leitura é como encontrar  álbuns de fotos antigas da família, desgastados e amarelados, com algumas palavras escritas atrás. Não é uma leitura fácil, pois não possui enredo, clímax, lição de moral ou humor. São os detalhes íntimos da vida francesa que ecoam na mente do leitor. Assim sendo, obra de Ernaux nos convida a refletir sobre a passagem do tempo e a importância das memórias na construção de nossa identidade. É um convite para olharmos para trás, para lembrarmos quem éramos, quem somos e quem queremos nos tornar. É uma contemplação sobre a efemeridade da vida e a constância do tempo, que não para para ninguém. A autora nos mostra que, assim como as fotografias vão desaparecer com o tempo, também nós vamos desaparecer, seremos esquecidos. Mas, ao mesmo tempo, somos eternizados nas memórias daqueles que nos conheceram, nos amaram, compartilharam momentos conosco.

Nas reuniões de família na época do pós-guerra, naquela lentidão interminável das refeições, alguma coisa vinha do nada e assumia uma forma: era o tempo já começado. Às vezes, os pais pareciam presos nele quando esqueciam de nos responder, os olhos perdidos em um tempo em que não estávamos, em que nunca estaremos, o tempo de antes. As vozes dos convidados se misturavam para compor a grande narrativa dos acontecimentos coletivos, os quais, pouco a pouco, passamos a acreditar que tínhamos vivido.

Os Anos não é apenas um livro sobre uma mulher francesa, é sobre todos nós, sobre a humanidade, Ernaux traduz em sua frases, a princípio, soltas e desconexas, uma série de lembranças fotográficas acerca de sua vida e da passagem do tempo. Suas reflexões evocam o âmago daqueles que se atrevem a percorrê-lo, ao passo de que é também sobre os eventos históricos que moldaram nossa vida, as experiências que nos marcaram, as transformações que passamos ao longo dos anos. É sobre a fragilidade da existência e a força das lembranças. Ernaux nos lembra que, assim como as fotografias e as refeições compartilhadas, somos seres sociais, ligados uns aos outros por laços invisíveis, mas poderosos. E é a partir dessas relações que construímos nossa história, nossa identidade, nossa humanidade.


Neste livro, ao abordar a citação de fotos em memórias é muitas vezes usada para adicionar profundidade e autenticidade à narrativa. As fotos podem ser descritas de forma detalhada, destacando elementos específicos que são relevantes para a passagem do tempo. As imagens também podem ser usadas como ponto de partida para reflexões sobre o passado, evocando memórias e emoções que complementam o texto. Além disso, a inclusão de fotos em memórias pode ajudar a criar uma conexão mais emocional entre o leitor e o narrador, aumentando o impacto da história contada.


Duas outras fotos pequenas com as bordas serrilhadas, provavelmente do mesmo ano, mostram a mesma criança, só que mais magra,  com um vestido de babado e mangas bufantes. Na primeira, ela se aninha com uma cara de sapeca junto a uma mulher encorpada, com um vestido listrado e cabelos presos no alto em grandes rolos. Na outra foto, a criança está com a mão esquerda erguida e fechada e a direita de mãos dadas co um homem alto, de camisa clara e calça vinco, o ar despreocupado. As duas fotos foram tiradas do mesmo dia, em um pátio com paralelepípedos, na frente de um muro baixo cheio de flores no topo. Por cima das cabeças, um varal com um prendedor de roupas que ficou esquecido (p.17)


Ernaux delineia suas memórias referindo à si própria em terceira pessoa, tecendo sob o fio histórico dos acontecimento como uma observadora consciente, este elemento tensiona a relação da memória afetiva da autora em relação ao amadurecimento das ideias dos acontecimentos de sua vida através da extensão do tempo, em um árduo processo de amadurecimento em relação à família, que, como podemos observar é trabalhado pela autora com cisão em outras obras com caráter biográfico, bem como na obra 'uma mulher', onde ela se debruça à explicitar em linhas gerais as memórias ao lado de sua mãe, uma mulher portadora de Alzheimer, onde se relaciona a importância da memória e das lembranças vivídas acerca das experiências da vida, e aqui, este recurso não é diferente. Transformando suas memórias em uma narrativa impessoal, ela convida o leitor à refletir sobre suas próprias memórias e tensões pessoais, causando um estranhamento a cada linha lida de forma única. 


Os anos como estudante já não são objetos de desejo nostálgico. Vê esses momentos como uma espécie de emburguesamento intelectual, de ruptura com o mundo de origem. A memória, que era romântica, passa a ser crítica. Com frequência, ela se lembra de cenas da infância, a mãe gritando um dia você vai cuspir no prato que comeu, os rapazes andando de vespa depois da missa, ela com a permanente cacheada como na foto do jardim do internato, os deveres de casa em cima da mesa de madeira forrada com uma toalha protetora impermeável engordurada onde o pai "fazia a colação" - as palavras que também voltam como uma pessoa esquecida (...) [(p. 109)]


Ernaux reflete sobre as mudanças na visão das experiências passadas ao longo do tempo, indicando uma evolução pessoal e uma ruptura com as origens, essa abordagem dos conflitos e ressentimentos internos causados pela transição evocam uma nova fase de vida, agora, marcada pela crítica e pela reflexão retratado por meio de retratos familaires sociais que refletem a construção da identidade e a influência do meio ambiente na formação do indivíduo.


Ao ler Os Anos, somos convidados a refletir sobre nossa própria vida, nossas escolhas, nossos caminhos. Somos levados a olhar para trás, para o passado, e para frente, para o futuro. Somos convidados a viver o presente com intensidade, sabendo que um dia seremos esquecidos, mas que nossas memórias, nossas experiências, nossos momentos de felicidade e dor, permanecerão registrados em algum lugar. Este apagamento histórico e emocional de Ernaux nos convida à sentir na pele o fino tecido das emoções elencadas no decorrer da vida. 

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